Cada vez mais gente com responsabilidades na igreja católica está a levantar a voz contra a crescente onda de pobreza que grassa em Portugal. Os mais fanáticos apaniguados do regime tratam logo de denegrir as suas denúncias rotulando-os de “vermelhos”. Há anos foi assim com o antigo bispo de Setúbal, Manuel Martins agora é com o bispo das Forças Armadas, Januário Torgal Ferreira. Porém, aquilo que eles dizem “não é comunismo, nem esquerdismo, nem socialismo, é doutrina social da Igreja, é pensamento social-democrata, reformista e, pasmem, liberal, liberal das liberdades” (1). O texto que aqui deixamos transcrito do Diário de Coimbra de hoje vai na mesma linha e o seu autor é membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz (2).
Os interesses do Príncipe
A larga periodicidade com que escrevo neste espaço obriga-me a recuar a uma conferência de imprensa, de há um mês, na qual, já no período de perguntas e respostas, Vitor Gaspar fez uma afirmação, que a realidade vem confirmando: “Neste círculo vicioso, nós não podemos proteger os mais fracos”. Absolutamente inadmissível na boca de um governante: então estão lé para “proteger quem? E quem protege os mais fracos: o pão e o carinho das instituições de solidariedade? O Estado é o primeiro responsável pelo bem comum dos cidadãos, de todos os cidadãos, e, dentre estes, dos mais carenciados, porque, como disse há muitos anos Leão XIII, o pobre “é menos apto para se defender e os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um carácter mais sagrado” (Rerum Novarum, 10). Doutrina tão velha e sempre nova e tão esquecida: os pobres precisam de especial protecção porque não sabem (ou não podem) defender-se e porque têm tão pouco, que esse mínimo se torna sagrado. Esta sacralidade resulta da centralidade da pessoa que vale não pelo que tem mas pelo que é.
Mas voltando à afirmação ministerial, perguntamos a quem quer ele proteger? Será os interesses do Povo que muitos governantes confundem com os seus próprios interesses segundo uma velha “raison d’État” que o cardeal Richelieu traduzia na frase “Os príncipes mandam nos povos e o interesse manda no príncipe”. Ou na versão moderna, de Tatcher: “Dizem que não tenho princípios. Eu tenho princípios só não deixo é que eles afoguem os meus interesses” (Autobiografia, cito de cor). Olhando a trajectória do ministro Gaspar parece cada vez mais claro quem ele quer servir.
Quando a política sai da órbita da ética vale tudo e a política, como nobre construção da polis, esboroa-se e transforma-se num exercício de interesses mesquinhos. O bem comum é conculcado pelos interesses egoístas particulares, num “acumular de poderio e recursos que é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (Pio XI, Quadragésimo anno, 107). E, mesmo não sendo essa a intenção, facilmente pode resvalar para um eugenismo social, em que são desprezados os incapazes de produzir riqueza, mesmo aqueles, que querendo, não lhes dão espaço para tal. Quando a política não é regida pela ética que obriga a cuidar e dar prioridade ao bem comum, tudo vale, inclusivamente dar a prioridade absoluta à austeridade, mesmo imoral, porque esmaga a dignidade de muitas pessoas, e errada, como todos avisavam e o insuspeito FMI confirmou.
Duas questões apenas.
Como católico, o que foi “ensinado” nas nossas catequeses, considerando que muitos dos actuais actores da política ainda terão passado pela catequese? Que valores foram ministrados? Propositadamente citei atrás dois papas cuja doutrina já houve mais que tempo para ser interiorizada pelos católicos. Por que têm ainda muitos católicos tanto medo da política, do debate, da reivindicação pacífica, da luta contra “estruturas do pecado” tão pedida por João Paulo II? O que ficou de João XXIII, do Concílio Vaticano II, de Paulo VI? Bastará votar de quatro em quatro anos e esperar que outros vivam o amor ao próximo através da caridade política? Uma boa pergunta para ir esclarecendo neste Ano de Fé.
Como cidadão, o que andam a fazer os movimentos cívicos: manifestações, comunicados, abaixo-assinados? Tudo isso é importante mas não chega. Temos todos e cada um de, em diálogo, viver novos estilos de vida, apontar propostas novas de arrumação da sociedade, pressionar a “gramática do poder” a introduzir a normativa do bem comum, recusar o fatalismo da ditadura do “não há alternativas”, lutar por todos meios morais contra a corrupção, o compadrio, a falta de transparência, ser voz e vez das vítimas silenciosas, assumir-nos como construtores irrenunciáveis de uma sociedade mais justa, solidária e humana. Um bom tópico para o Ano da Cidadania que aí vem.
Sem uma resposta adequada, a esperança morre, o sentido da vida perde-se, a solidariedade murcha e o futuro fica sem bases sólidas.
(1) Pacheco Pereira, Público, 27/10/2012
(2) José Dias da Silva
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