Grande parte da juventude actual nunca terá ouvido falar em Karl Marx e, muito menos, na sua importante obra O Capital, entre muitas outras. Marx tornou-se quase um proscrito nos tempos de domínio quase absoluto da doutrina neoliberal mas o conhecimento da sua obra ajuda a perceber muito do que se passa actualmente. Ele viveu no século XIX contudo, muitas das ideias que deixou sobre o capitalismo continuam plenamente válidas, numa altura em que o sistema, estendendo os seus tentáculos por todo o planeta, revela todo o seu potencial calamitoso. Ninguém melhor do que Francisco Louçã para nos dar a conhecer, ainda que de forma menos que telegráfica quem foi Karl Marx. Encontrámos este texto na última edição da Visão.
Karl Marx
No seu romance Grandes Esperanças, Charles Dickens, um dos escritores que melhor retratou o século XIX, apresentava assim o mundo vertiginoso que então estava a surgir: “Perguntei-lhe qual era a sua profissão. ‘Capitalista’, respondeu-me. Suponho que me viu percorrer a sala com o olhar, porque prosseguiu: ’Na City. Não me vou contentar em empregar os meus capitais a segurar navios. Vou comprar ações numa boa empresa e conseguir um lugar no conselho de administração. Vou também ocupar-me um pouco de negócios mineiros. E nada disto me impedirá de fretar alguns milhares de toneladas para mim próprio. Creio que farei negócios com as Índias. E os lucros serão importantes?, perguntei. ‘Assombrosos’, respondeu.”
Aquele era, de facto, um tempo assombroso, com a afirmação da civilização industrial, pujante, no meio de revoluções (1830, 1848, 1871) e guerras, em que nasciam Estados e se formavam nações (a Alemanha, a Itália) e nascia o movimento operário.
Karl Marx (1818-1883) foi o decifrador desse campo do capitalismo moderno. O enigma que estudou foi este: como é que a mercadoria é produzida? Ou: como é que o trabalho produz valor? Esta é e continua a ser a questão essencial de todas as questões modernas.
Marx criou o socialismo moderno, porque respondeu a essa questão, afirmando que o trabalho produz a mercadoria e que há, portanto, um roubo de parte desse valor: o trabalhador só é pago por uma parcela do que produziu e a outra, a mais-valia, é apropriada como lucro. Ora, onde há crime há criminoso. Marx definiu a sua vida pelo combate contra este crime e pela construção de um movimento de emancipação, o partido do trabalho ou do comunismo.
É certo que o capitalismo, a sociedade adaptativa por excelência, que gera inovação como a sua forma de pulsação, mudou muito desde o século XIX. Mas a questão das questões continua a mesma: tinha Marx razão ao identificar, no trabalho humano, no trabalho produtivo direto ou no trabalho intelectual que o estrutura, a origem da acumulação e da repartição desigual que forma as classes sociais? A medir pelas respostas alternativas, que foram sempre fantasiosas, sim. A economia ortodoxa, por exemplo, garante que todos são pagos pelo seu valor, capital e trabalho, e que o mercado, garantindo a apropriação privada da mais-valia do trabalho, é o nome desse equilíbrio. Até afiança que esse equilíbrio será estável, ao arrepio de toda a evidência das grandes crises, como a atual.
De Marx se dirá que foi um filósofo na esquerda do pensamento do seu tempo, herdeiro da revolução francesa, que foi um analista político e um historiador arguto, que foi um economista inspirado, que foi um enciclopedista como poucos e que trabalhou incessantemente. E que foi perseguido pelas dificuldades, que viveu pobre, que só conseguiu publicar em vida uma pequena parte da sua obra. Foi tudo isso, e foi um militante das suas ideias, apaixonado pelos sinais de mudança, pelas lutas coletivas, pela novidade.
Um episódio pouco conhecido da sua vida revela essa paixão. Fascinado pelas ideias de Darwin, marx enviou-lhe O Capital, com uma dedicatória: “Da parte do seu sincero admirador, Karl Marx.” Responde Darwin: “Caro senhor, agradeço a honra que me fez ao enviar-me a sua grande obra sobre o capital (…). Se bem que as nossas investigações tenham sido tão diferentes, creio que os dois desejamos seriamente a extensão do saber e é isso que, seguramente, fará crescer a longo prazo a felicidade da humanidade.” O marxismo é também este humanismo radical.
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