domingo, 30 de dezembro de 2012

ELITE ANTIDEMOCRÁTICA


Verdade seja dita, a elite portuguesa sempre aceitou contrariada o regime democrático e esse ódio manifesta-se pela rejeição do alargamento do acesso a níveis mais elevados de bem-estar de sectores da sociedade que sempre estiveram longe deles. Os exemplos são muitos e é fácil trazermos alguns à colação, como, os que se situam nas áreas da educação, da saúde e, de um modo geral, em todos os direitos sociais que se foram conquistando ao longo de muitos anos e através de muitas lutas.

Também não é menos verdade que a crise tem sido muito bem aproveitada por um sector minoritário da sociedade para “pôr o povo português nos eixos” e acabar, de vez, com os seus sonhos igualitaristas. O Governo PSD/CDS está a levar a cabo esse desígnio e, a melhor prova é a que se tira das regulares declarações dos que lhe são ideologicamente próximos. É gente que aplaude com frenesim todas as medidas que levem ao desmantelamento do Estado Social em todos os seus sectores.

A posição da elite portuguesa perante a crise é o tema de fundo para o artigo que Daniel Oliveira assina no Expresso de ontem.


BENDITA CRISE

Passo Coelho disse que o desemprego era uma oportunidade e um secretário de Estado, acompanhado por Miguel Relvas, apelou à emigração dos portugueses. Este Governo é feito de gente desastrada que tropeça nas suas próprias palavras? Nem por isso. Desde o banqueiro que, sobre a resistência do povo português à austeridade, disse que “aguenta, aguenta!” até á filantropa que zurziu nos portugueses que comiam bife, são tantas as pérolas que uma pessoa se perde na colheita. A última foi de César das Neves. “Esta crise é uma oportunidade de bondade, de caridade e de solidariedade. Bendita crise que nos trouxe o essencial”.

Quando alguém diz uma coisa excecionalmente absurda pode atribuir-se o disparate a idiossincrasias pessoais. Quando há um padrão deve perceber-se a sua origem. E o padrão é este: alguma coisa estava mal neste país e a crise terá um efeito corretivo virtuoso. O que estava mal, e isso está presente em todas as barbaridades que vão sendo ditas, eram os “direitos adquiridos”. Da elite? Não. Essa não perdeu o emprego nem terá de emigrar, não depende da caridade nem consta que tenha de desistir do bife. O problema está no povo. E, muito em particular, numa nova classe média sem pedigree. Esta caracterização dos portugueses dificilmente resiste aos factos. Somos dos países europeus com mais baixos rendimentos e o endividamento das famílias fez-se, sobretudo, para garantir um bem essencial: a habitação. Os portugueses trabalham muito, ganham pouco e consomem menos do que os restantes europeus. Têm um Estado social incipiente que pagam exclusivamente com os impostos retirados aos rendimentos do seu trabalho. E somos, e esse é um elemento fundamental para compreender o retrato que a elite faz dos portugueses, um dos países mais desiguais da Europa. Uma desigualdade material que se traduz numa desigualdade simbólica. A verdade é que a redução do fosso social que a democracia garantiu nunca foi assimilada pelos que se habituaram a viver num clima de privilégio social. Esse desconforto sempre se revelou no nojo que uma certa intelectualidade instalada manifestou pela democratização do ensino, e muito em especial da Universidade. Ou num discurso moralista sobre o “consumismo” da populaça, que enche centros comerciais com os seus horrendos fatos de treino. Ou na velha conversa que atribui aos portugueses o eterno pecado da “inveja”. Como se ela não fosse apenas o sintoma de uma sociedade onde a ascensão social está vedada à maioria e as redes de contacto são uma poderosa barreira a qualquer ideia de mérito.

Mais do que as imperfeições do nosso tecido empresarial ou os erros políticos cometidos desde a adesão à CEE, o que esta crise trouxe para o debate público, dominado por um grupo social restrito, foi a cultura profundamente antidemocrática da nossa elite. Uma elite que, ao contrário do resto do país, pouco ou nada mudou nos últimos 38 anos. O ódio pela sociedade democrática, que Tocqueville viu com algum temor numa nova América liberta da sociedade aristocrática europeia, é o ódio de uma velha burguesia protegida, quase ao estilo aristocrático, ao igualitarismo. Bendita crise, que voltou a pôr o ordeiro povo português nos eixos. Os bifes e os bons sentimentos voltam a ser para quem pode. Para o resto, trabalho, resignação e inveja calada.

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