A guerra dos números da manifestação de 2 de Março, muito mais acesa do que noutras manifestações anteriores, veio colocar a nu o nervosismo da imprensa e dos comentadores de serviço das forças mais próximas do Governo e de todos os que se identificam com a doutrina neoliberal. É claro que a maioria de direita finge não se importar com o volume da contestação que está a ser alvo mas manda os seus peões de brega levar a cabo manobras de diversão no sentido de desviarem as atenções das pessoas do que é essencial: o enorme ódio que a maioria dos portugueses nutre pelo Governo, fruto da descarada espoliação que estão a sofrer e do colossal rol de incompetências e mentiras que conduzem o país para o abismo.
Muito melhor do que nós, o texto seguinte que transcrevemos do Diário de Coimbra de 10/3/2013 tece um comentário certeiro à volta do 2 de Março.
799,5 mil manifestantes (*)
As ruas das cidades portuguesas e venezuelanas encheram-se, na última semana, por razões diferentes. Aqui, contestava-se o poder. Lá celebrava-se um homem finado e o poder que ele personificou. Nos dois casos, havia uma coisa em comum: eram os espoliados da sorte que traziam à rua os seus irreprimíveis estados de alma.
À hora a que milhares de portugueses clamavam o seu descontentamento, eu viajava, entre Lyon e Coimbra. Só por essa razão não me acrescentei aos 800 mil que desfilaram em Lisboa, ou aos 20 mil de Coimbra. Essa era a minha genuína vontade. Limitei-me a seguir os noticiários formais e informais, os das redes sociais. Convenci-me, assim, da magnitude do protesto.
No domingo, apesar dos avisos dos amigos, precipitei-me para um jornal, à procura de pormenores. Fiquei escandalizado, ao ver que o jornal da minha escolha se entretinha com a magna questão de provar que a manifestação de Lisboa fora menos participada que a sua antecessora de 15 de Setembro, ficando muito aquém dos 800 mil participantes, reclamados pela organização. Mas era incapaz de contrapor um número. E até o sofrido e arrastado editorial foi dedicado ao assunto. A polémica dos números em greves e manifestações, nunca me estimulou e sempre me irritou. É aberrante.
O que vi nas fotografias publicadas e nas imagens das televisões foi suficiente para me certificar uma gigantesca manifestação, provavelmente, a maior da II República. A partir daqui, é-me indiferente saber se lá estavam 800 mil manifestantes ou 799 mil vírgula cinco. Lamento que outros órgãos de informação, em dívida de inteligência, tenham dedicado atenção ao mesmo assunto, nos dias seguintes. Fizeram-no, porque a questão requer menos lucidez intelectual, por isso, é mais fácil e imediata do que a análise das motivações substantivas de larguíssimos milhares de portugueses.
Na segunda-feira uma rádio discutia o metro quadrado do Terreiro do Paço, como quem analisa a área disponível de uma lata de sardinha e número de assoalhadas que ela pode comportar. Lastimável.
No fim de tudo, não se percebe onde pretendem chegar. Será que a maioria dos portugueses não odeia governo que a esbulha todos os dias? Ou será que existe uma maioria, silenciosa e invisível, que apoia esta política de extermínio social?
Tenho outra explicação. As forças mais conotadas com o Governo, políticas e económicas e a imprensa ao seu serviço começam a dar os seus primeiros sinais de medo, de alguma covardia, perante um povo que se manifesta, apesar da enorme tolerância com que tem sofrido os maiores dislates da governação. Esta guerra de números pretende apenas desincentivar a participação popular em futuros protestos.
Resta saber se esta luta continuará a usar os mesmos protestos, isto é, a manifestação ordeira, condicionada por aquilo que está inscrito na lei. Talvez não seja o melhor caminho. Para evitar que tudo isto se torne numa liturgia maçadora, admito que os organizadores inovem, na procura de novas expressões de protestos, provavelmente, desafiando a própria lei que, obviamente, foi feita pelo poder, de acordo com os seus interesses. Serão tentados a pisar o risco, usando, sobretudo, o factor surpresa. Não estou a incentivar nada, estou apenas a avisar.
Ontem mesmo [9 Março], Cavaco Silva, numa rede social, justificava o seu silêncio dos últimos meses. Dizia que não quer fomentar “sentimentos anti-governo”. Com isso, veio dizer que ele próprio desenvolve sentimentos anti-populares, que está do lado oposto àqueles que lhe confiaram o seu voto. As idiossincrasias de Cavaco conduziram-no a uma interpretação muito especial e limitada das competências que a Constituição confere ao Presidente da República. Uma coisa é a cooperação e a lealdade entre as instituições do regime, outra é a transformação da Presidência da República numa extensão subalterna do Governo. Também aqui haverá mais medo que prudência.
Na Venezuela , as ruas também se encheram, logo que foi conhecida a morte de Hugo Chávez. Ao mesmo tempo os media portugueses blasfemavam o homem que, ao lado de Putin, se opôs à insanidade de George Bush, cegamente obedecido pela Europa, decapitada de liderança.
Não se disse nada de novo. Apenas se repetiu a propaganda negra com que, ao longo de anos, Bush provocou o líder que não o deixava meter o pé na América do Sul.
Ninguém se lembrou de dizer que Hugo Chávez reduziu a fome, a pobreza extrema, o analfabetismo, a mortalidade infantil, com os dinheiros do petróleo. Tal como ninguém disse que ele se candidatou à Presidência da República, comprometido com uma “revolução bolivariana”, contra as oligarquias esclavagistas que, ao longo de décadas, reduziram o país a um protectorado norte-americano. Não enganou ninguém.
Teve defeitos, muitos, que aqui apontei, a seu tempo. Mas sem uma américa neo-conservadora no norte, nunca teria havido um Hugo Chávez no sul.
À hora a que milhares de portugueses clamavam o seu descontentamento, eu viajava, entre Lyon e Coimbra. Só por essa razão não me acrescentei aos 800 mil que desfilaram em Lisboa, ou aos 20 mil de Coimbra. Essa era a minha genuína vontade. Limitei-me a seguir os noticiários formais e informais, os das redes sociais. Convenci-me, assim, da magnitude do protesto.
No domingo, apesar dos avisos dos amigos, precipitei-me para um jornal, à procura de pormenores. Fiquei escandalizado, ao ver que o jornal da minha escolha se entretinha com a magna questão de provar que a manifestação de Lisboa fora menos participada que a sua antecessora de 15 de Setembro, ficando muito aquém dos 800 mil participantes, reclamados pela organização. Mas era incapaz de contrapor um número. E até o sofrido e arrastado editorial foi dedicado ao assunto. A polémica dos números em greves e manifestações, nunca me estimulou e sempre me irritou. É aberrante.
O que vi nas fotografias publicadas e nas imagens das televisões foi suficiente para me certificar uma gigantesca manifestação, provavelmente, a maior da II República. A partir daqui, é-me indiferente saber se lá estavam 800 mil manifestantes ou 799 mil vírgula cinco. Lamento que outros órgãos de informação, em dívida de inteligência, tenham dedicado atenção ao mesmo assunto, nos dias seguintes. Fizeram-no, porque a questão requer menos lucidez intelectual, por isso, é mais fácil e imediata do que a análise das motivações substantivas de larguíssimos milhares de portugueses.
Na segunda-feira uma rádio discutia o metro quadrado do Terreiro do Paço, como quem analisa a área disponível de uma lata de sardinha e número de assoalhadas que ela pode comportar. Lastimável.
No fim de tudo, não se percebe onde pretendem chegar. Será que a maioria dos portugueses não odeia governo que a esbulha todos os dias? Ou será que existe uma maioria, silenciosa e invisível, que apoia esta política de extermínio social?
Tenho outra explicação. As forças mais conotadas com o Governo, políticas e económicas e a imprensa ao seu serviço começam a dar os seus primeiros sinais de medo, de alguma covardia, perante um povo que se manifesta, apesar da enorme tolerância com que tem sofrido os maiores dislates da governação. Esta guerra de números pretende apenas desincentivar a participação popular em futuros protestos.
Resta saber se esta luta continuará a usar os mesmos protestos, isto é, a manifestação ordeira, condicionada por aquilo que está inscrito na lei. Talvez não seja o melhor caminho. Para evitar que tudo isto se torne numa liturgia maçadora, admito que os organizadores inovem, na procura de novas expressões de protestos, provavelmente, desafiando a própria lei que, obviamente, foi feita pelo poder, de acordo com os seus interesses. Serão tentados a pisar o risco, usando, sobretudo, o factor surpresa. Não estou a incentivar nada, estou apenas a avisar.
Ontem mesmo [9 Março], Cavaco Silva, numa rede social, justificava o seu silêncio dos últimos meses. Dizia que não quer fomentar “sentimentos anti-governo”. Com isso, veio dizer que ele próprio desenvolve sentimentos anti-populares, que está do lado oposto àqueles que lhe confiaram o seu voto. As idiossincrasias de Cavaco conduziram-no a uma interpretação muito especial e limitada das competências que a Constituição confere ao Presidente da República. Uma coisa é a cooperação e a lealdade entre as instituições do regime, outra é a transformação da Presidência da República numa extensão subalterna do Governo. Também aqui haverá mais medo que prudência.
Na Venezuela , as ruas também se encheram, logo que foi conhecida a morte de Hugo Chávez. Ao mesmo tempo os media portugueses blasfemavam o homem que, ao lado de Putin, se opôs à insanidade de George Bush, cegamente obedecido pela Europa, decapitada de liderança.
Não se disse nada de novo. Apenas se repetiu a propaganda negra com que, ao longo de anos, Bush provocou o líder que não o deixava meter o pé na América do Sul.
Ninguém se lembrou de dizer que Hugo Chávez reduziu a fome, a pobreza extrema, o analfabetismo, a mortalidade infantil, com os dinheiros do petróleo. Tal como ninguém disse que ele se candidatou à Presidência da República, comprometido com uma “revolução bolivariana”, contra as oligarquias esclavagistas que, ao longo de décadas, reduziram o país a um protectorado norte-americano. Não enganou ninguém.
Teve defeitos, muitos, que aqui apontei, a seu tempo. Mas sem uma américa neo-conservadora no norte, nunca teria havido um Hugo Chávez no sul.
(*) Sérgio Ferreira Borges
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