O Governo português está a agir mais como representante dos interesses da troika do que da legítima aspiração do povo a uma vida com um mínimo de dignidade. Está em causa a nossa sobrevivência colectiva num momento em que já nos encontramos exauridos perante os níveis colossais de austeridade a que estamos sujeitos e na espectativa de que essa austeridade venha a crescer ainda mais. Todos os dias chegam ao nosso conhecimento situações dramáticas de pessoas cuja vida se tornou num inferno perante a impossibilidade de proverem ao sustento das famílias em virtude de não encontrarem trabalho.
A criação de emprego só se faz com investimento e quando este não existe espera-se sempre o pior. Acontece que o montante da nossa dívida assim como os juros da mesma atingiram valores que se tornaram impagáveis. Nada sobra para investimento que leve à criação de emprego, ao mesmo tempo que a dívida vai sempre crescendo. A solução que muita gente de bom senso preconiza é a reestruturação da dívida, com um perdão de parte da mesma para que a economia portuguesa possa minimamente respirar. O exemplo que se evoca tem a ver com o perdão da dívida alemã do pós-guerra, que há 60 anos, 70 países, curiosamente incluindo a Grécia, decidiram conceder à Alemanha. Foram 62,6% do que devia que este país deixou de pagar. Não terá sido coincidência que, a partir daqui, se tenha verificado um rápido aumento do seu PIB.
O texto seguinte constitui o essencial de um artigo de opinião (Público, 3/3/2013) que parte do exemplo que referimos acima, mostrando-se globalmente favorável ao perdão de parte da nossa dívida. O sublinhado é nosso.
Há 60 anos, 70 países decidiram perdoar quase dois terços da dívida externa alemã. O país duplicou o seu PIB na década seguinte. Um exemplo a seguir na actualidade?
Com a troika em Portugal e com o Governo, os partidos da oposição e os parceiros sociais a pedirem uma melhoria das condições dos empréstimos que foram concedidos ao país, uma efeméride registada na passada semana dificilmente poderia passar em claro. Na quarta-feira, concluíram-se 60 anos desde que foi assinado o acordo de perdão de dívida entre a República Federal da Alemanha e os seus credores, onde se destacavam os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, mas onde também surgia a Grécia.
A 27 de Fevereiro de 1953, a economia alemã, que tinha atingido o fundo após a II Guerra Mundial, deu um passo decisivo para uma recuperação classificada por muitos como milagrosa. Desembaraçou-se de quase dois terços da sua dívida externa e iniciou uma década em que conseguiu duplicar o seu PIB.
Num momento em que a Alemanha já unificada e sob a liderança de Angela Merkel assume o papel de principal credora dos seus parceiros na Europa periférica que recorreram aos empréstimos da troika - Grécia, Irlanda e Portugal -, não surpreende que surja o debate sobre que lições se devem retirar na actualidade sobre o que se passou há seis décadas. Um exemplo do efeito positivo que os perdões de dívida podem ter em economias em grandes dificuldades? Ou apenas uma comparação sem sentido de dois cenários completamente diferentes?
Recuando até esse dia e olhando para aquilo que ficou estabelecido nos Acordos de Londres então assinados, é difícil não traçar paralelos entre o passado e o presente. Em 1953, a Alemanha já tinha beneficiado da injecção de fundos provenientes do Plano Marshall e tinha acumulado, tanto antes como depois da guerra, uma enorme dívida externa, junto de mais de 70 países. Oito anos apenas após a queda de Berlim, a desconfiança dos outros países face à Alemanha era grande
Endividada, com a economia em ruínas e com a credibilidade a zero, era como estava a Alemanha nessa altura. Um retrato em tudo semelhante ao que agora se faz da Grécia e, de forma mais moderada, dos outros países que tiveram de recorrer ao resgate da troika.
Como credores da Alemanha em 1953, o destaque também ia para uma troika, constituída pelos EUA, o Reino Unido e a França.
As negociações não foram fáceis e os registos mostram mesmo que estiveram perto de fracassar mas, no final, os Estados Unidos, preocupados em garantir que não se repetiam os erros do após I Guerra Mundial, que a Alemanha Ocidental mantinha a sua capacidade para se armar e que poderia continuar a comprar produtos norte-americanos, acabaram por aceitar aquilo que estava a ser pedido pelas autoridades germânicas.
Na declaração final, EUA, Reino Unido e França deixaram clara a lógica da decisão: "A restauração da solvabilidade alemã inclui uma solução adequada para a dívida que leve os problemas económicos da Alemanha em consideração."
Em primeiro lugar, aceitaram uma redução do valor da dívida externa alemã (acumulada tanto antes como depois da guerra) de 62,6%. Para além disso, estabeleceram regras favoráveis para o pagamento do valor que ficou em falta. Podia ser sempre pago em marcos, os juros ficariam a níveis abaixo do mercado e, muito importante, o serviço de dívida teria de se adaptar, a todo o momento, à capacidade da economia alemã para fazer face à sua dívida.
Para que isso acontecesse, ficou estabelecida uma regra - sempre cumprida durante a década seguinte - que limitava a amortização anual da dívida e de juros a 5% do valor das exportações do país.
Com o perdão de dívida, com o dinheiro recebido do Plano Marshall e com a sua capacidade para criar produtos com sucesso no mercado mundial, a Alemanha duplicou o valor do PIB entre 1953 e 1963 e conseguiu, antes do tempo previsto, pagar toda a dívida não perdoada.
Quem defende que as condições actualmente impostas à Grécia, Irlanda e Portugal não dão a esses países a possibilidade de recuperarem a sua economia e pagarem as suas dívidas na totalidade tem apresentado o perdão de dívida alemã de há 60 anos como o exemplo a seguir. No entanto, quem pelo contrário defende que sem austeridade as economias periféricas não realizariam um verdadeiro ajustamento alerta que a reestruturação de dívida feita pela Grécia e os empréstimos concedidos pela troika aos países sujeitos a programas já são muito maiores do que os concedidos à Alemanha. (…)
(*) Sérgio Aníbal
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