A
chamada municipalização da educação está na linha estratégica do Governo, no
sentido de alijar responsabilidades de toda a ordem nas várias áreas que
constituem o sector social. Tal como já vem acontecendo, por exemplo, no sector
da saúde, há um fio condutor, marcadamente ideológico, no sentido de definir
para a educação um claro modelo de mercado, “agora de mercado municipal” como
muito bem ironiza e demonstra o prof. universitário Santana Castilho no texto que hoje assina no Público.
Ainda
que perca as eleições de 2015, a maioria de direita não vai deixar pedra sobre
pedra no sector educativo, descaracterizando completamente a escola existente
ainda há bem poucos anos. Os professores que se reformaram há cinco ou seis
anos, se agora voltassem a leccionar, desconheceriam por completo a escola que
deixaram. E talvez a procissão ainda vá no adro…
A
municipalização da educação está a ensaiar os primeiros passos em contexto
estratégico favorável, prudentemente escolhido, já que os professores não
pensam senão nuns dias de férias, depois de afogados em trabalhos de exames,
que culminaram um ano particularmente desgastante.
Foi
Poiares Maduro, que não o ministro da pasta, que anunciou, na Comissão
Parlamentar de Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local da Assembleia
da República, em Março passado, a intenção de o Governo entregar a gestão da
educação a dez municípios-piloto. Na altura, não clarificou o que entendia por
gestão da educação. Tão-só disse que a intenção do Governo era descentralizar.
Mas descentralizar, verbo transitivo que significa afastar do centro, não é
panaceia que traga automática melhoria ao sistema. O experimentalismo
descentralizador dos últimos anos no que toca à colocação de professores e o
cortejo inominável de aberrações e favoritismos que gerou é um bom exemplo de
que muitas vertentes da gestão do ensino devem permanecer centralizadas.
Justifica-o a pequena dimensão do país, a natureza dos compromissos, legais e
éticos, assumidos pelo Estado face a um vastíssimo universo de cidadãos e as
economias de escala que as rotinas informáticas permitem. Quanto aos aspectos
que ganharão, e são muitos, se aproximarmos a capacidade de decidir ao local
onde as coisas acontecem, não deve o poder ser entregue às câmaras, mas aos
professores e às escolas. Justifica-o a circunstância de estarmos a falar da
gestão pedagógica. Porque quem sabe de pedagogia são os professores.
Há
um fio condutor para esta proposta, qual seja o de impor à Educação nacional o
modelo de mercado, agora de mercado municipal. Trata-se de transformar o acto
educativo em produto de complexidade idêntica à rotunda ou à piscina municipal.
Quer-se apresentar a Educação como um simples serviço, circunscrito a
objectivos utilitários e instrumentais, regulado prioritariamente por normas de
eficiência. Querem exemplo mais escabroso que o convite para que as câmaras
cortem professores, até ao limite máximo de 5% do número considerado
necessário, a troco de 12.500 euros por docente abatido?
Este
é mais um passo que concretiza a estratégia empresarial e tecnocrática que o
Governo tem para a Educação, bem fixada pela elitização do ensino, que o “dual”
postula para as crianças de dez anos que reprovem duas vezes, pela adopção de
pedagogias de adestramento, de que a hiperinflação dos exames é exemplo, e pelo
contributo generoso para a introdução de linhas de montagem no ensino, que os
monstruosos mega-agrupamentos tipificam. A municipalização, com os pressupostos
conhecidos de distribuição de competências, implode de vez a propalada
autonomia das escolas e abre portas a iniciativas partidárias de que temos
sobeja demonstração empírica, via experiência já colhida de intensa introdução
de jogos políticos no funcionamento dos conselhos gerais. Cruzada com as
intenções (e o financiamento cativo em sede de Orçamento do Estado) que foram
anunciadas quanto ao cheque-ensino, poderá repetir no país o que se verificou
na Suécia, com a criatividade activa dos grupos económicos a explorarem o
“negócio” até que, anos volvidos, se reconheça a sua falência.
Diz-se
que a generalização só se efectivará se uma avaliação, cujo modelo é
desconhecido, a recomendar. Os exemplos, velhos e recentes, atestam o valor que
a intenção tem. Veja-se o que se acabou de fazer com a avaliação dos centros de
investigação. Recorde-se como a experiência do ensino dual passou,
vertiginosamente, sem qualquer avaliação, de 10 para 300 escolas. E olhe-se,
com um sorriso complacente, o “empreendedorismo” voluntarista que já se esboça:
o presidente da Câmara de Óbidos já anunciou Filosofia para os alunos do 1.º
ciclo do básico, yoga para os do jardim-de-infância e golfe e “eco design” para
os do secundário.
Embora
a lei não o permita e de momento apenas se fale numa autorização para os
municípios recrutarem pessoal docente para projectos específicos locais
(lembremo-nos da contratação de professores de Inglês a quatro euros à hora,
feita por empresas intermediárias, nos tempos de José Sócrates), a eventual
passagem para as autarquias da responsabilidade de gestão e pagamento aos
professores traz à colação a falência técnica de muitas câmaras, os atrasos,
muitos, verificados para com professores de actividades extracurriculares e o
receio de novas discricionariedades ditadas pelo caciquismo e pela
promiscuidade entre câmaras e órgãos unipessoais de direcção das escolas.
Os que se têm movido para
desregular o sector por esta via, sem que nenhuma fundamentação empírica o
justifique, dão um passo substancial. A saúde move-se já no mesmo sentido,
dando razão ao pensamento de Foucault, que nos ensinou que os governos ditos
liberais promovem a dissipação do Estado pulverizando mecanismos de controlo e
tutela por toda a parte. Ou dito de outro modo: a apetência do Governo por ter
cada vez menos responsabilidades sociais vai de passo síncrono com a ânsia
caciqueira de mais poder por parte dos autarcas. Com esse engodo, os autarcas
acabam promovendo políticas a que se oporiam se a iniciativa partisse do
Governo central. E o Governo central subtrai-se, maquiavelicamente, aos protestos
que as suas políticas originam. E há quem fale de ausência de estratégia!
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