terça-feira, 27 de janeiro de 2015

E DEPOIS DA FESTA?


“O BCE fez o mais fácil na gestão política: gerir expectativas a curto prazo” afirmam Mariana Mortágua e Francisco Louçã, num artigo conjunto que assinam hoje no Público e onde desmontam a farsa que constitui a operação “magistralmente orquestrada” por Draghi e o “seu plano de emissão de um bilião (milhão de milhão) de euros para comprar dívida” que não terá quaisquer efeitos significativos para além do marketing propagandístico que gerou.
Numa operação magistralmente orquestrada, Draghi anunciou o seu plano de emissão de um bilião (milhão de milhão) de euros para comprar dívida. Entusiasmou as bolsas e acentuará a desvalorização do euro, ajudando assim a combater a deflação. Sobretudo, tranquilizou a Europa por mais um dia. Fez o mais fácil na gestão política: gerir expectativas a curto prazo. Porque, passada a festa, tudo isto é pouco mais do que uma fantasia e mal procedem os que se agarram a esta tábua, pois nem o euro está salvo, nem a recuperação começou.
Que é um acto de desespero não restam dúvidas. Talvez pudesse ter resultado em 2008, mas agora chega tarde, quando já toda a inércia europeia fracassou, e com uma mensagem política clara para o povo grego, "não há política monetária sem austeridade".
Em detalhe, o bilião divide-se em três fatias. A primeira, e maior, para comprar dívida soberana, não diretamente aos Estados (o que os tratados estupidamente proíbem), mas a intermediários financeiros, pagando-lhes uma comissão, até a um limite equivalente à participação de cada país no capital do BCE. A segunda, para comprar dívida emitida pelos próprios bancos. A terceira, e menor, para comprar dívida de certas agências europeias.
O objetivo é combater a deflação, partindo do pressuposto que o problema está nas dificuldades de liquidez do sistema financeiro. Mas não está. Há três anos que o BCE abre programas de financiamento a juros baixíssimos para os bancos para que estes possam conceder crédito à economia. O último, em setembro de 2014, foi um flop. Nem a banca mostrou interesse, nem o crédito aumentou. Para haver empréstimos ao investimento, é preciso antes que exista investimento e consumo. É para a austeridade que devemos olhar, se quisermos entender a deflação.
O resultado (e objetivo) do programa não é mais crédito, mas garantir juros baixos a longo prazo que valorizem todos os ativos financeiros, cujos preços disparam.
Isso tem enormes consequências redistributivas na sociedade. Como o Banco de Inglaterra demonstrou, ao analisar um programa semelhante, as ações e títulos financeiros valorizaram-se 26% (800 mil milhões de euros) e os 5% mais afortunados detêm quase metade desses valores. Foi um bodo aos ricos.
Pior, tudo isto é ineficaz (o investimento só aumenta com expectativas de rentabilidade da produção e portanto com mais procura) e até perigoso (porque este mar de liquidez pode alimentar novas bolhas especulativas, dada a estagnação). Como alguns economistas sugeriram, se Draghi escolhesse distribuir 7600 euros a cada família, ou o dobro para a metade da população europeia mais pobre, gastava o mesmo dinheiro e tinha mais efeito na economia. Aumentava a procura e a produção, criava emprego e anulava a deflação. Mas isso favoreceria a população e não a finança, e a Europa não está para essas aventuras perigosas.
Entretanto, para Portugal, a bazuca monetária está mais ao nível de uma bombinha de carnaval. Tendo em conta os limites já explicados, o total de dívida pública que o BCE poderia comprar nos mercados seria cerca de 24 mil milhões, ou seja, como o PÚBLICO demonstrou, apenas mais 5 mil milhões do que os que já detém. Mas mesmo que pudesse afectar todo o montante a comprar novas emissões, o que não pode, o Estado poderia poupar no máximo um vigésimo dos juros que agora paga e continuaria a ter uma dívida de 123% do PIB.
Aliás, o mais provável é que desperte pouco interesse: os bancos portugueses estão a usar a dívida pública que têm nos balanços para servir de colateral aos créditos do BCE.
No fim do dia, a Europa usa todos os meios para evitar fazer o essencial. Quando o que sobra é uma arma que afinal dispara uma fantasia e não uma solução, estamos a chegar ao fim das ilusões – porque nem a Grécia nem Portugal podem evitar uma reestruturação da sua dívida. E, em vez de financiar a finança, o BCE deveria ser obrigado a evitar a dependência dos mercados para proceder à única reforma estrutural que nunca foi ensaiada, depois de tudo ter falhado: relançar o investimento com a força do dinheiro público. Mas isto exigiria que a Europa existisse e que não estivesse presa na armadilha das regras tonitruantes, ineficazes e perigosas do euro. Melhor seria se a canção de Leonard Cohen não fosse só poesia: primeiro Atenas, then we take Berlin...
 

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