“O BCE fez o mais fácil na gestão
política: gerir expectativas a curto prazo” afirmam Mariana Mortágua e Francisco
Louçã, num artigo conjunto que assinam hoje no Público e onde desmontam a farsa
que constitui a operação “magistralmente orquestrada” por Draghi e o “seu plano
de emissão
de um bilião (milhão de milhão) de euros para comprar dívida” que não terá quaisquer
efeitos significativos para além do marketing propagandístico que gerou.
Numa operação magistralmente orquestrada,
Draghi anunciou o seu plano de emissão de um bilião (milhão de milhão) de euros
para comprar dívida. Entusiasmou as bolsas e acentuará a desvalorização do
euro, ajudando assim a combater a deflação. Sobretudo, tranquilizou a Europa por
mais um dia. Fez o mais fácil na gestão política: gerir expectativas a curto
prazo. Porque, passada a festa, tudo isto é pouco mais do que uma fantasia e
mal procedem os que se agarram a esta tábua, pois nem o euro está salvo, nem a
recuperação começou.
Que é um acto de desespero não restam dúvidas.
Talvez pudesse ter resultado em 2008, mas agora chega tarde, quando já toda a
inércia europeia fracassou, e com uma mensagem política clara para o povo
grego, "não há política monetária sem austeridade".
Em detalhe, o bilião divide-se em três fatias.
A primeira, e maior, para comprar dívida soberana, não diretamente aos Estados
(o que os tratados estupidamente proíbem), mas a intermediários financeiros,
pagando-lhes uma comissão, até a um limite equivalente à participação de cada
país no capital do BCE. A segunda, para comprar dívida emitida pelos próprios
bancos. A terceira, e menor, para comprar dívida de certas agências europeias.
O objetivo é combater a deflação, partindo do
pressuposto que o problema está nas dificuldades de liquidez do sistema
financeiro. Mas não está. Há três anos que o BCE abre programas de
financiamento a juros baixíssimos para os bancos para que estes possam conceder
crédito à economia. O último, em setembro de 2014, foi um flop.
Nem a banca mostrou interesse, nem o crédito aumentou. Para haver empréstimos
ao investimento, é preciso antes que exista investimento e consumo. É para a
austeridade que devemos olhar, se quisermos entender a deflação.
O resultado (e objetivo) do programa não é mais
crédito, mas garantir juros baixos a longo prazo que valorizem todos os ativos
financeiros, cujos preços disparam.
Isso tem enormes consequências redistributivas
na sociedade. Como o Banco de Inglaterra demonstrou, ao analisar um programa
semelhante, as ações e títulos financeiros valorizaram-se 26% (800 mil milhões
de euros) e os 5% mais afortunados detêm quase metade desses valores. Foi um
bodo aos ricos.
Pior, tudo isto é ineficaz (o investimento só
aumenta com expectativas de rentabilidade da produção e portanto com mais
procura) e até perigoso (porque este mar de liquidez pode alimentar novas
bolhas especulativas, dada a estagnação). Como alguns economistas sugeriram, se
Draghi escolhesse distribuir 7600 euros a cada família, ou o dobro para a metade
da população europeia mais pobre, gastava o mesmo dinheiro e tinha mais efeito
na economia. Aumentava a procura e a produção, criava emprego e anulava a
deflação. Mas isso favoreceria a população e não a finança, e a Europa não está
para essas aventuras perigosas.
Entretanto, para Portugal, a bazuca monetária
está mais ao nível de uma bombinha de carnaval. Tendo em conta os limites já
explicados, o total de dívida pública que o BCE poderia comprar nos mercados
seria cerca de 24 mil milhões, ou seja, como o PÚBLICO demonstrou, apenas mais
5 mil milhões do que os que já detém. Mas mesmo que pudesse afectar todo o
montante a comprar novas emissões, o que não pode, o Estado poderia poupar no
máximo um vigésimo dos juros que agora paga e continuaria a ter uma dívida de
123% do PIB.
Aliás, o mais provável é que desperte pouco
interesse: os bancos portugueses estão a usar a dívida pública que têm nos
balanços para servir de colateral aos créditos do BCE.
No fim do dia, a Europa usa todos os meios para
evitar fazer o essencial. Quando o que sobra é uma arma que afinal dispara uma
fantasia e não uma solução, estamos a chegar ao fim das ilusões – porque nem a
Grécia nem Portugal podem evitar uma reestruturação da sua dívida. E, em vez de
financiar a finança, o BCE deveria ser obrigado a evitar a dependência dos
mercados para proceder à única reforma estrutural que nunca foi ensaiada,
depois de tudo ter falhado: relançar o investimento com a força do dinheiro
público. Mas isto exigiria que a Europa existisse e que não estivesse presa na
armadilha das regras tonitruantes, ineficazes e perigosas do euro. Melhor seria
se a canção de Leonard Cohen não fosse só poesia: primeiro Atenas, then
we take Berlin...
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