quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

GOVERNO SEM MANDATO POLÍTICO


A maioria de direita tem governado sem mandato político. As promessas eleitorais foram rapidamente atiradas para o lixo e a dupla Passos / Portas agiu como se não vivêssemos em democracia e os compromissos com os eleitores não fossem para respeitar.
Num excelente artigo que assina hoje no Público, o politólogo André Freire (*) usa “a privatização da TAP como um exemplo paradigmático da governação da direita no poder desde 2011, em quatro dimensões: fanatismo ideológico; resultados fracassados; descrédito da ação política; conceção enviesada do compromisso político.
1. Fanatismo ideológico
É verdade que o governo e os partidos que o suportam (PSD e CDS-PP) sempre disseram que queriam ir além da Troika. Aquele era não apenas o memorando de entendimento do FMI, da CE e do BCE com o governo de Portugal, era o programa que o país necessitava porque tinha vivido acima das suas possibilidades, era portanto o próprio programa do PSD mas em versão light. Mas a direita, sobretudo o PSD, também sempre disse que não queria cortar salários, nem pensões, nem subsídios de Natal e de férias, tal não seria necessário. E quanto aos cortes no Estado (Social) e nos serviços públicos, o PSD sempre disse que queria apenas "cortar nas gorduras", nos custos intermédios, e sem serem precisos despedimentos. Na verdade tem ido muito para além da Troika e das suas próprias promessas, governando sem mandato político. E tem-no feito de forma bastante assimétrica, o que é bem revelador de que não há, nem havia, nenhuma "espada Dâmocles" sob a cabeça do executivo; há sim, sobretudo, fanatismo ideológico. Vejamos alguns exemplos. Entre 2011 e Setembro de 2014, o governo reduziu o dobro do emprego público, cerca de 4% ao ano, face ao que a Troika previa, 2%; no período, a Administração Pública perdeu cerca de 79.898 trabalhadores, por volta de 11% do total. E o ponto de partida era já baixo: no final de 2011, o emprego público pesava cerca de 15% do emprego, em média, nos países da OCDE; em Portugal era de apenas 11%. Os cortes na saúde, na educação e na segurança social, bem como a escala das privatizações, foram também muito além da Troika, ou seja, não atingiram apenas "as gorduras", chegaram bem no âmago do "filé mignon" (ver, por exemplo, o Diário de Notícias de 14-4-2014, para o caso da Educação). O governo gosta sempre de se esconder atrás da Troika, pelo menos desde que as coisas começaram a correr mal e a governação sem mandato entrou em velocidade de cruzeiro (final de 2011), mas a verdade é que, como já sublinhou o novo líder do PS, o memorando não legitima tal obsessão da direita com a venda da TAP. Primeiro, porque previa apenas a privatização parcial das grandes empresas e o governo quer, pelo menos a prazo, uma privatização integral. Segundo, porque estimava que tal plano de privatizações atingisse um encaixe de 5,5 mil milhões de euros e já se chegou a cerca de 8 mil milhões: "The plan targets front-loaded proceeds of about €[5.5] billion through the end of the program, with only partial divestment envisaged for all large firms (sublinhados meus)." Ou seja, o governo gosta de se esconder atrás da Troika, mas nem a Troika ainda cá está, nem o memorando legitima este fanatismo ideológico, sustentado também pelo beneplácito presidencial.   
2. Resultados fracassados
Note-se que muitas das grandes empresas que têm sido privatizadas por este governo (ANA, CP Carga, EDP, REN, CTT, Caixa Seguros), e por executivos anteriores (também socialistas: o afã privatizador há muito contagiou o centro-esquerda europeu, nomeadamente com os ventos do consenso de Washington e da terceira via, daí o declínio da diferenciação ideológica que mina as democracias europeias), são monopólios naturais e, amiúde, bastante lucrativos. Por isso, a não ser por algum constrangimento externo muito forte, a privatização, sobretudo integral, é triplamente errada: porque contraria quem defende o funcionamento das economias sob a lógica do mercado; porque cria um capitalismo rentista; porque priva o Estado de encaixes financeiros. Mas poderia argumentar-se que tais privatizações seriam úteis para pagarmos as nossas dívidas. Nada de mais enganador, e daí o fracasso desta governação: a dívida pública era de 71,7% do PIB, em 2008, 108,1% em 2011, e cerca de 129,0% no final de 2013; para 2014 estimam-se 130%; mais, até 2009-2010 Portugal tinha um rácio entre a dívida e o PIB praticamente igual (ou um pouco acima) à média da Eurozona; desde então a trajetória de divergência é cavada e cifrou-se, em 2013, numa enorme distância: 129%, para Portugal, 92,6%, para a Zona Euro. Deste ponto de vista, a futilidade deste afã privatizador revela-se em todo o seu esplendor. Adicionalmente, os trágicos efeitos dos cortes "mais troikistas do que a Troika" na Saúde, na Educação, na Segurança Social, com uma deterioração fortíssima dos serviços públicos prestados, revelam que além da futilidade há efetios perversos. Alguém falou em sucesso do "ajustamento"? Em resgatar a pátria do colapso?
3. Descrédito da ação política
A governação sem mandato político é um substancial alimento para o descrédito da política e dos políticos. Os maus resultados da governação e a contrário do estimado, deslegitimação pelos outputs, concorrem no mesmo sentido. E a assimetria na austeridade revela aos cidadãos que não há nada de inexorável em tudo isso, alimentando mais uma vez o descrédito. Mas depois há toda uma sucessão de episódios que agravam este pernicioso clima para a saúde das democracias, de que o caso da privatização da TAP fornece abundantes ilustrações. Por um lado, em 2011 Coelho e os seus acólitos eram os paladinos do fim das golden shares ("ações douradas"), ou seja, do fim do regime em que um pequeno lote de ações dos Estados em empresas parcialmente privatizadas poderia servir para vetar decisões das respetivas administrações. Hoje, para levar avante a obsessão de privatizar da TAP, o primeiro-ministro propõe um verdadeiro "caderno de encargos dourado" para quem quiser comprar a companhia, que vai ao ponto de se poder reverter a privatização, em caso de incumprimento, sem custos para o Estado. Por outro lado, num dia o ministro da economia e o secretário de estado dos transportes dizem que os benefícios para os trabalhadores de tal "caderno dourado" só se aplicam aos sindicalizados dos sindicatos que aceitaram negociar com o governo a privatização; no dia seguinte, são desautorizados pelo premier mas, para cúmulo, desmentem que tenham dito o que disseram no dia anterior perante as câmaras de televisão. Alguém pode levar a sério esta gente?
4. Conceção enviesada do compromisso político
A somar à falta de legitimidade política resultante da governação sem mandato e dos outros "calcanhares-de-aquiles" referidos acima, há no caso vertente que juntar dois factos adicionais: o mandato do governo termina este ano; o principal partido da oposição, o PS, a quem a direita e o PR estão sempre a pedir sentido de compromisso político, já disse que é contra este modelo de privatização e, especialmente, considera que o Estado deveria manter a maioria do capital (pelo menos 51%). Ora este elemento revela que os apelos ao consenso e ao sentido de responsabilidade do PS não são senão uma falácia que nada tem a ver com "compromissos políticos democráticos", que pressupõem uma aproximação entre partes com posições divergentes, antes representa um desejo e uma vontade de que o PS abdique da suas posições e capitule em toda a linha perante as posições da direita. Mas isso não seria nenhum compromisso, seria uma abdicação.    

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