quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O PASSA CULPAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE


No debate parlamentar sobre urgências hospitalares que hoje teve lugar, o deputado João Semedo afirmou com toda a propriedade que “a política do ministério daSaúde pode poupar muitos euros, mas não poupa vidas”, como se tem verificado por estes dias, com a morte de alguns pacientes à espera de vez para serem atendidos nas urgências.
É óbvio que estas situações só acontecem devido à política de cortes sucessivos no orçamento da saúde depauperando cada vez mais o SNS.
Também parece claro para todos os que se debruçam sobre esta problemática que a degradação do SNS tem por finalidade o favorecimento do negócio das clínicas privadas que, não por acaso, nascem por todo o país como cogumelos…
Todas as falhas que têm vindo a verificar-se no sector público da saúde estão, muitas vezes, a ser atribuídas aos profissionais desta área, numa monstruosa campanha promovida discretamente pelo ministério da Saúde e que conta com a colaboração – consciente ou não – de alguns jornais e jornalistas.
É este o tema de um artigo de opinião que José Manuel Silva, bastonário da Ordem dos Médicos, assina hoje no Público.
A 30 de Dezembro, o principal título de primeira capa do PÚBLICO era 720 euros por dia ainda não atraíram médicos ao hospital Amadora-Sintra e o título interior afirmava Amadora-Sintra ainda não conseguiu contratar médicos mesmo a 30 euros por hora.
A maioria das pessoas apenas lê títulos e os jornalistas, que são pessoas informadas e inteligentes, sabem que ambos os títulos mentem, pelo que a intenção de enganar as pessoas é explícita e deliberada.
Efectivamente, o texto nunca refere que esse valor é pago às empresas intermediárias e não aos médicos, que recebem muito menos. Por outro lado, para o leitor comum, um dia de trabalho são oito horas, não 24 horas de trabalho intenso, complexo, sob enorme pressão e sem possibilidade de erro.
Na verdade, o que o médico recebe, descontado o lucro da empresa intermediária e depois de impostos, são cerca de 288 euros por 24 horas de um trabalho seguido, stressante e extenuante, montante a que ainda tem de deduzir as suas despesas. Qualquer mecânico ganha muito mais e com muito menos trabalho, cansaço e responsabilidade!
A 31 de Dezembro, outro jornal diário escolheu para principal título da capa Farmacêuticas gastam 60 milhões com médicos. O título mente descaradamente, pois, no texto do artigo, correctamente, já se fala também, como receptores desses apoios, em sociedades científicas, associações de doentes, farmacêuticos, estudos de investigação, etc.
Então, porque é que o jornal pretendeu, deliberadamente, passar a mensagem, para quem apenas lê títulos nos escaparates e para os que vêem apenas a primeira página (nomeadamente em todas as televisões), de que o financiamento era exclusivamente para médicos, alimentando subliminarmente, de forma potenciada, a ideia de promiscuidade entre indústria e médicos?
Estes são dois exemplos bem concretos e recentes de como, regularmente, saem notícias na comunicação social cujos títulos são construídos propositadamente para, junto da opinião pública, afectar a dignidade e honorabilidade de todos médicos.
A quem serve este comportamento de alguma comunicação social? Apenas ao Ministério da Saúde, cujos assessores de imprensa, principescamente remunerados, têm conduzido uma campanha de descredibilização dos médicos para procurar ocultar a responsabilidade do ministério na desorganização e diminuição da capacidade de resposta do SNS aos legítimos direitos dos doentes. As situações reportadas sobre a enorme congestão das urgências hospitalares são perfeitamente terceiro-mundistas e inaceitáveis. Há doentes que morrem sem a devida assistência.
A notícia do PÚBLICO ignora completamente a grave responsabilidade do Ministério da Saúde em não permitir que o Hospital Amadora-Sintra tivesse contratado atempadamente os profissionais de que necessitava para responder ao previsível maior afluxo de doentes, até porque permitiu o encerramento dos centros de saúde vários dias seguidos. Além de que não é na véspera de períodos festivos que se tenta desesperadamente contratar médicos, certamente com a sua vida já programada de forma diferente, e o preço/hora real de um médico em serviço de urgência, um dos trabalhos mais exigentes de qualquer profissão, é absurdamente baixo!
O PÚBLICO omitiu ainda as causas profundas da permanente desorganização e congestão das urgências hospitalares, o que não acontecia até há poucos anos, apesar de o ministério dizer que há cada vez mais médicos no SNS. A que se deve esta contradição, afinal? Precisamente às medidas erradas, contraproducentes e de má gestão tomadas por este Ministério da Saúde! Nomeadamente a redução do tempo de abertura dos centros de saúde, os bloqueios à Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, o facto de os hospitais estarem proibidos de contratar directamente médicos em prestação de serviços e de os contratos com as empresas, completamente protegidas pelo Senhor Ministro, não conterem cláusulas de salvaguarda dos dias festivos.
As falhas das empresas já se arrastam impunemente há anos e, apesar de repetidamente avisado pela Ordem dos Médicos, só agora é que o ministro da Saúde vem dizer para a comunicação social que vai aplicar multas...
O outro jornal diário ignorou completamente que se não fossem os apoios da indústria farmacêutica, que são legais e transparentes, a actualização e investigação científica dos médicos e outros profissionais seria gravemente afectada, com prejuízo dos doentes, para além de que as sociedades científicas e associações de doentes teriam praticamente de fechar as portas, porque o Ministério da Saúde não assume as suas obrigações e não disponibiliza quaisquer apoios significativos.
A questão que não posso deixar de formular é por que razão, recorrendo claramente a uma forma de mentir, há jornalistas e jornais que se colocam a par do Ministério da Saúde numa embusteira campanha de difamação da classe médica? Ao mesmo tempo, branqueiam as tremendas responsabilidades deste ministério nas cada vez maiores dificuldades de funcionamento do SNS de acordo com os seus preceitos constitucionais.
Se o jornalismo é “isto”, então temos mesmo razões concretas para duvidar deste “jornalismo”, que tem muito espaço por onde melhorar...  O jornalismo sem ética e sem independência deveria ser uma excepção, combatida activamente por todos os jornalistas. Exactamente como a Ordem dos Médicos procura fazer no seio da sua classe, atitude que culminou recentemente com algumas suspensões e expulsões.
Porquê este ataque permanente aos médicos, se é a resiliência e a capacidade dos médicos portugueses que, contra os cortes excessivos na Saúde, que também os atingem pessoalmente, vão conseguindo manter o SNS a funcionar com um mínimo de qualidade? Para retirar as atenções dos verdadeiros culpados pelas perdas e insuficiências da Saúde em Portugal?

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