O
radicalismo neoliberal a que a maioria de direita no Governo nos habituou faz
parecer de esquerda qualquer tomada de posição que contrarie os seus ditames. É
por esta razão que devemos ter muito cuidado com a linguagem utilizada pelo PS,
no sentido de esperarmos algo de muito agradável daquele partido.
O
passado histórico dos “socialistas” não aponta nada que nos garanta uma governação
muito diferente da que a direita está a levar a cabo. Como muito bem afirma
hoje no Público o historiador Manuel Loff, “o PS fez sempre as mesmas escolhas”
convergindo na generalidade dos casos com a direita, apesar da linguagem de
esquerda usada quando se encontra na oposição e dos bem cheirosos programas e
promessas que apresenta nas campanhas eleitorais. Por que razão havia de ser
diferente agora, tendo em atenção que, tal como PSD e CDS, se encontra amarrado
às políticas de austeridade e ao Tratado Orçamental impostos pela troika?
“A
consolidação das finanças públicas foi um dos principais fracassos da
governação dos últimos três anos. Este fracasso foi particularmente
significativo, pois o combate ao défice foi assumido, de forma obsessiva, como
objetivo quase único. (…) O Governo PSD/PP apostou tudo no saneamento das
finanças públicas, tendo relegado para segundo plano os problemas da economia”,
procurando criar na opinião pública “uma euforia totalmente deslocada e
unanimemente reprovada, fazendo passar a noção de que o período de contenção
orçamental já tinha acabado. O PS tem plena consciência da gravidade da
situação em matéria de finanças públicas. (…) Não adianta esconder a verdade
aos portugueses.”
Parece
mas não é. Parece o que o PS diz sobre os últimos três anos de governo
Passos/Portas, mas não: isto é o que o PS dizia, no capítulo “Falar verdade
sobre a situação atual”, das suas Bases Programáticas para as eleições de 2005. Dez anos, 600 mil
desempregados e 500 mil novos emigrantes depois, o PS está no mesmo sítio. E
comporta-se como se nada tivesse a ver com a degradação social em que vivemos
desde 2002. É o que tem o rotativismo: é todo ele feito de reencenação, de
pedir que se confie uma e outra vez, que se substitua um dos parceiros do baile
da rotação pelo outro, não sem antes se esquecer o que ele havia feito e dito
antes da última voltinha de dança... Um inspire-expire-inspire-expire-esquerda-direita
que se pretende fazer passar por uma democracia saudável.
Não
me quero meter em nenhuma adivinhação voluntarista sobre o que fará António
Costa quando ganhar as eleições. Quero, insisto, voltar à história, isto é,
comparar o que o PS diz hoje com o que disse no passado perante situações
semelhantes, e o que disse e prometeu com o que fez. Porque é o que podemos
fazer. E regresso ao tema apenas porque André
Freire (AF) comentou as minhas duas crónicas sobre a relação do PS
com a esquerda, recordando-me que, a não ser que eu “queira 'mudar de povo'”, a
única forma de constituir um “governo de esquerda em Portugal, no cenário
atual”, é com o PS (in PÚBLICO, 24.12.2014). Não quero, nunca quis, “mudar de
povo” – mas, seguramente como o meu amigo AF, sei bem que os eleitores podem
ser massivamente enganados. Nem que seja pela sua irrenunciável vontade de
acreditar que agora é que é! O que peço é um pouco de sustentação histórica, e
política, a todos os que pedem ao milhão de eleitores de esquerda que não
confiam no PS que dêem o voto a quem quer confiar no PS.
Pode-se
especular o que se quiser sobre o PS/2015. Pelo que se pode achar até que “a
estratégia de Costa” para “recusar, com firmeza e clareza” – onde?, quando? –,
“as políticas radicalmente neoliberais dos atuais detentores do poder [é] a
mais adequada”. Mas o que se pode é investigar o que fez o PS/2005-11 (de
Sócrates mas também de Costa, que é tudo menos uma novidade) e o PS/1983-85 (do
Bloco Central) – isto é, sempre que substituiu no poder a direita em fases de
recessão económica.
Em
2005, como em 1983, a dívida pública crescia. O que fez o PS? Em ambos os
casos, disse nos seus programas eleitorais que a dívida se pagava com
crescimento económico, e, ao contrário do que pretende quem agora se propõe
coligar com o PS, nunca prometeu renegociar coisa alguma. Em 2005, depois de
cedido o essencial da soberania económica a quem mandasse na eurozona, Sócrates
(e Costa) prometeu “empenhar-se ativamente no processo de revisão do Pacto
europeu de Estabilidade e Crescimento” assinado em 1997 por Guterres, mas sem
pôr em causa os “referenciais de 3% para o défice e 60% para a dívida pública”.
Viu-se: Sócrates foi de PEC em PEC nacional até negociar o memorando com a troika; nada reviu, nem tentou
rever. Em 2005, o PS prometia “um programa plurianual de redução da despesa
corrente” de “modernização e racionalização da administração pública”. Também
se viu: o que dali resultou foram dezenas de milhares de aposentações
apressadas da administração pública, com penalizações que nem na letra miudinha
do programa eleitoral haviam aparecido, a redução a pó de décadas de esforço
para dar escolas e centros de saúde às comunidades do interior, ou os primeiros
cortes que em todo o período democrático se fizeram nos salários nominais dos
funcionários públicos.
Em
1983, o PS apresentou-se às eleições com 100 medidas para 100 dias, garantindo querer dar “mais
estabilidade aos jovens” e “defender os direitos de quem trabalha”. Chegado ao
poder com o PSD, o PS negociaria com o FMI mais dívida do que aquela que já
havia, e Soares daria carta branca a um dos primeiros liberalões das Finanças,
Ernâni Lopes (depois de já ter tido Medina Carreira no seu primeiro governo,
1976-78). Abriu-se caminho para o lay-off
e o trabalho não remunerado, empurrando para a emigração ou lançando na miséria
centenas de milhares de pessoas, e tudo para que o Estado pudesse pagar a
dívida... Em todos os casos, o PS (exatamente como a direita) nunca hesitou
quando teve de fazer escolhas entre pagar os juros da dívida sem pôr em causa o
rendimento dos mais ricos ou preservar os direitos e as legítimas expectativas
dos económica e socialmente mais frágeis. Foi a estes que exigiu sempre que
arcassem com os custos da dívida, em nome da futura integração europeia (em
1983-85) ou da manutenção no euro (2005-11). Bem pode AF recordar os
“contributos fundamentais do PS (...) para a construção do Estado social que
temos”; precisa é de não esquecer que o mesmo PS nunca duvidou em pô-lo em
causa para poder cumprir o que o FMI e/ou a UE impuseram/õem. Perante a
evidente perceção de que estas políticas punham em causa a democracia económica
que dizia em 1975-76 querer construir, o PS fez sempre as mesmas escolhas: uma
certa Europa em vez da Constituição, uma certa modernização liberal em vez dos
mais básicos direitos sociais, os juros da dívida em vez de um mínimo de
dignidade humana.
Sem sequer prometer nada em
contrário, porque havemos de esperar que o PS mude as suas escolhas em 2015?
Porque elas estão aí, as escolhas que temos todos de fazer. Confiar ou não
confiar no PS, por exemplo. Eu, por exemplo, já escolhi.
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