O
tempo de espera e o caos instalado nos serviços de urgência nas últimas semanas
levou a que cinco pessoas já morressem à espera de ser atendidas. É com toda a
naturalidade que os portugueses ligam esta situação aos cortes radicais
efectuados no orçamento da saúde nos últimos anos. A poupança de dinheiro leva
inevitavelmente à perda de vidas. Não há alternativa.
O
que se está a passar em termos de afluxo de pessoas aos serviços de urgência não
é uma novidade nesta altura do ano em que as gripes surgem em força e é
necessária uma resposta rápida. Se isto não acontece só há um culpado a apontar
– o ministério da Saúde e o Governo em geral, pelas políticas de austeridade
implementadas.
“O
afluxo às urgências” é o tema abordado num artigo de opinião, no Público de
hoje, pelo Presidente
do Conselho de Enfermagem da Ordem
dos Enfermeiros
onde é referida, nomeadamente, a falta destes profissionais da saúde e “o não
aproveitamento dos recursos e das competências em enfermagem” em Portugal.
A
questão preocupante e emocionalmente intensa do afluxo às urgências tem sido
abordada com um foco demasiado limitado e pouco orientado para as necessidades
de saúde da população. O problema, que de facto se agrava com o período do ano
que atravessamos, tem muitos outros focos que não a falta de médicos.
Pode-se
destacar a ausência de uma visão salutogénica do sistema de saúde, como
defendida por Antonovsky, nomeadamente o reduzido investimento em promoção da
saúde e capacitação das populações e comunidades (uma das principais enfases da
Organização Mundial de Saúde), uma resposta em cuidados de saúde primários
deficitária, a insuficiente capacidade de resposta da Rede Nacional de Cuidados
Continuados Integrados e de outras estruturas de apoio â população idosa,
ou ainda a organização dos serviços hospitalares por camas afetas a
especialidades (ou médicos em particular) em vez de se centrarem nas
necessidades, mutáveis, das pessoas e das comunidades que servem.
O
não aproveitamento dos recursos e das competências em enfermagem (gerais e com
maior intensidade, especializadas), definidas e regulamentadas por lei, é
também um fator que interessa introduzir se pretendermos encontrar soluções
para um problema social e económico complexo e particularmente agressivo para a
sensação de segurança e de bem-estar que a população merece. É disso exemplo a
resposta do sistema pré-hospitalar que tem afastado os enfermeiros de algumas
das suas acções, recorrendo a profissionais menos qualificados e com naturais
dificuldades em responder a situações por vezes simples, ou o manifesto
atropelo ao cumprimento das dotações seguras em enfermagem por muitos dos
serviços do sistema, ou ainda, simplesmente, o completo desrespeito das
competências dos enfermeiros portugueses na organização dos serviços e do
sistema de saúde, numa intrigante manifestação de miopia quando o investimento
feito (que ultrapassa por vezes a dezena de anos de formação) foi também
participado na maioria dos casos pelo erário público.
Quanto à falta de
médicos, interessa esclarecer os portugueses: segundo o balanço social de 2013
do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2013 observa-se um saldo positivo de 914
médicos e um saldo negativo de 1277 enfermeiros; segundo o Health at a Glance
(2013) Portugal apresenta o 5.º melhor ratio médico/1000 habitantes (4,0
para uma média de 3,2) dos países da OCDE, e um dos piores ratio
enfermeiro/1000 habitantes (5,8 para uma média de 8,8) nos países da OCDE. O
serviço Nacional de Saúde apresenta um assustador ratio enfermeiro/médico
de 1,5, quando o aconselhado pela OMS é de 2,5 a 3. Surge a questão: será falta
de médicos ou antes uma teimosia em manter uma estratégia de resposta para as
necessidades de saúde da população que já demonstrou que não funciona? Será
falta de médicos ou apenas uma surdez selectiva ao que todos os organismos
internacionais (e alguns documentos nacionais) na área da saúde, técnicos e
políticos, advogam - uma mudança no perfil funcional e nas responsabilidades
dos enfermeiros no âmbito do sistema prestador de cuidados de saúde, centrando
os cuidados na comunidade e no cidadão?
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