domingo, 4 de janeiro de 2015

EUA: AS CRIANÇAS COMO VÍTIMAS DA DESIGUALDADE


Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da economia e, portanto, uma personalidade insuspeita de qualquer radicalismo de esquerda, faz, num artigo de opinião publicado no Expresso Economia de ontem, um retrato aterrador da situação de uma parte substancial das crianças americanas. Este grupo é constituído por vítimas indefesas de uma sociedade onde as desigualdades sociais são gritantes, fruto de uma injusta distribuição da riqueza e onde a “celebrada imagem de terra das oportunidades” não é mais do que uma miragem. Infelizmente para milhões de famílias americanas a realidade que vivem é bem diferente da que a propaganda pretende fazer crer no exterior. Toda esta situação não é alheia – antes é uma consequência – de estarmos num país onde o neoliberalismo económico reina sem qualquer oposição. Para esta doutrina, crianças e velhos, porque não produzem, são um peso para a sociedade e, portanto, tendencialmente marginalizáveis. Os sublinhados são nossos.  
As crianças, reconhecem-se há muito, formam um grupo especial. Não escolhem os pais, e muito menos as condições genéricas em que nascem. Não possuem as mesmas capacidades que os adultos para se protegerem ou cuidarem de si. Foi por isso que a Liga das Nações aprovou a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança em 1924, e que a comunidade internacional adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989.
Infelizmente, os Estados Unidos não têm estado à altura das suas obrigações. Com efeito, nem sequer ainda ratificaram a Convenção sobre os Direitos da Criança. Os EUA, com a sua celebrada imagem de terra das oportunidades, deveriam ser um exemplo inspirador de tratamento justo e esclarecido das crianças. Em vez disso, são um farol do falhanço – que contribui para o entorpecimento global da arena internacional sobre os direitos da criança.
Embora uma infância americana média possa não ser a pior do mundo, a disparidade entre a riqueza do país e a condição das suas crianças não tem paralelo. Cerca de 14,5% de toda a população americana é pobre, mas 19,9% das crianças – perto de 15 milhões de indivíduos – vivem na pobreza. Entre os países desenvolvidos, só a Roménia tem uma taxa mais elevada de pobreza infantil. A taxa dos EUA é dois terços maior do que a do Reino Unido e quase o quádruplo da taxa nos países nórdicos. Para alguns grupos, a situação é muito pior: mais de 38% das crianças negras, e 30% das crianças hispânicas, são pobres.
Nada disto acontece por os americanos não se preocuparem com as suas crianças. Acontece porque a América adotou nas últimas décadas uma agenda política que fez com que a sua economia se tornasse extremamente desigual, deixando os segmentos mais vulneráveis da sociedade cada vez mais para trás. A concentração crescente da riqueza – e uma redução significativa dos impostos a que está sujeita – traduziu-se em menos dinheiro para gastar em investimentos para o bem público, como a educação e a protecção das crianças.
Como resultado, as crianças da América ficaram em piores condições. A sua sorte é um exemplo doloroso de como a desigualdade não mina apenas o crescimento económico e a estabilidade – como estão finalmente a reconhecer os economistas e organizações como o Fundo Monetário Internacional – mas também viola as nossas mais acalentadas noções daquilo que deveria ser uma sociedade justa.
A desigualdade no rendimento está correlacionada com as desigualdades na saúde, no acesso à educação, e na exposição a riscos ambientais, fatores que sobrecarregam as crianças mais que outros segmentos da população. Na verdade, quase uma em cada cinco crianças pobres americanas foi diagnosticada com asma, uma taxa 60% mais elevada do que nas crianças não pobres. As dificuldades de aprendizagem ocorrem quase duas vezes mais frequentemente entre crianças de famílias de rendimentos inferiores a 35000 dólares por ano do que nas famílias que ganham acima dos 100000 mil dólares. E há quem queira, no Congresso dos EUA, acabar com os vales de alimentação (“food stamps” no original – NdT) – dos quais dependem 23 milhões de famílias americanas, ameaçando as crianças mais pobres com a fome.
Estas desigualdades nos rendimentos estão intimamente ligadas a desigualdades de oportunidades. Inevitavelmente, nos países onde as crianças têm uma nutrição inadequada, acesso insuficiente a cuidados de saúde e a educação e exposição mais elevada a riscos ambientais, os filhos dos pobres terão perspetivas de vida muito diferentes daquelas dos filhos dos ricos. E, em parte porque as perspetivas de vida de uma criança americana estão muito dependentes do rendimento e da educação dos seus pais do que noutros países avançados, os EUA apresentam hoje a menor igualdade de oportunidades de qualquer país avançado. Nas universidades mais elitistas da América, por exemplo, apenas cerca de 9% dos estudantes provêm da metade mais pobre da população, enquanto 74% provêm da quarta parte mais rica.
A maior parte das sociedades reconhece uma obrigação moral de ajudar a garantir que os jovens conseguem cumprir o seu potencial. Alguns países até impõem um mandato constitucional para a igualdade de oportunidades na educação.
Mas na América gasta-se mais na educação de estudantes ricos do que na educação dos pobres. Como resultado, os EUA estão a desperdiçar alguns dos seus ativos mais valiosos, com alguns jovens – desprovidos de aptidões – a virarem-se para atividades disfuncionais. Estados como a Califórnia gastam quase tanto nas prisões como no ensino superior – e por vezes mais.
Sem medidas compensatórias – que incluam educação pré-escolar, iniciada idealmente na mais tenra idade – as oportunidades desiguais traduzem-se em resultados desiguais para toda a vida, quando a criança atinge os cinco anos de idade. Isso deveria constituir um estímulo para a ação política.
Na verdade, embora os efeitos nocivos da desigualdade sejam de grande alcance, e imponham elevados custos sobre as nossas economias e sociedade, são em grande parte evitáveis. Os extremos de desigualdade observados em alguns países não são o resultado inexorável das forças e leis económicas. As políticas certas – redes mais fortes de segurança social, fiscalidade progressiva, e melhor regulação (particularmente no sector financeiro), para nomear algumas – poderão reverter estas tendências devastadoras.
Para gerar a vontade política exigida por essas reformas, devemos confrontar a inércia e a inação dos legisladores com os factos sombrios da desigualdade e dos seus efeitos devastadores sobre as nossas crianças. Podemos reduzir a privação infantil e aumentar a igualdade de oportunidades, criando assim os alicerces para um futuro mais justo e próspero – um que reflita os nossos próprios valores confessos. Então porque não o fazemos?
Dos danos que a desigualdade inflige sobre as nossas economias, políticas e sociedades, o dano sobre as crianças exige preocupação especial. Independentemente da responsabilidade que possa recair sobre os adultos pobres pelo seu destino em vida – podem não ter trabalhando o suficiente, poupando o suficiente, ou tomado boas decisões – as circunstâncias das crianças são-lhes impostas sem qualquer tipo de escolha. As crianças, talvez mais do que quaisquer outros, precisam da proteção conferida pelos direitos – e os EUA deveriam fornecer ao mundo um exemplo marcante do que isso significa.

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