Em
qualquer época da história e em qualquer país do mundo a escola é o retrato da
sociedade. O neoliberalismo económico radical, base ideológica do governo
português, tem obviamente os seus reflexos no sector educativo para que a
escola veicule valores e conhecimentos que sustentem e reproduzam o sistema. Esta
afirmação tão directa não é feita pelo Prof. Santana Castilho no artigo que
assina hoje no Público mas a análise que faz contém os seus pressupostos. Por
isso, poucas melhorias podem ser conseguidas na escola actual sem que se deixem
de alterar as bases ideológicas que a sustentam. De qualquer maneira e também
por esta razão é muito interessante a leitura deste texto.
O
filósofo Slavoj Zizek citou T. S. Elliot num comício da Syriza para dizer que
“há momentos em que a única escolha é entre a heresia e a descrença”. E
clarificou a ideia afirmando que “só uma nova heresia, representada hoje pela
Syriza, pode salvar o que vale a pena salvar do legado europeu: democracia,
confiança nas pessoas, igualdade e solidariedade”.
O
estado em que a política educativa dos dois últimos governos colocou escolas e
professores faz-me suspirar por um “momento Syriza” na Educação. Por uma nova
heresia, que coloque cooperação onde hoje está competição. Porque a cooperação
aproxima-nos e sedimenta-nos enquanto grupo e a competição, ampliando as
diferenças, afasta-nos, isolados por egoísmos. Porque a cooperação serve as
pessoas e harmoniza-as, tal como a competição, hoje sacralizada na nossa
cultura, serve os números e os conflitos.
Informação
constante de um novo portal do Ministério da Educação e Ciência veio dizer-nos
que há 24 escolas onde são dadas todos os anos notas internas significativamente
mais favoráveis do que as conseguidas nos exames nacionais. Daí a mais um lance
na competição público versus
privado foi
um passo, sem espaço para assumir que se comparam coisas diferentes: num caso o
conhecimento científico demonstrado num só teste; no outro caso o percurso de
um ano de desempenho num ambiente pluridisciplinar e multifactorial, sendo que
alguns desses factores de classificação são bem relevantes para a formação
integral do aluno e para a sua maturidade cívica.
Os
exames nacionais e os testes estandardizados internacionais têm vindo a assumir
uma dominância evidente na concepção das políticas para a Educação definidas
pelos dois últimos governos. E essa dominância tem a sua génese na nossa
intestina tendência para importar modismos alheios. Com efeito, quando a Escola
se manifestou em crise um pouco por todo o mundo ocidental e alguns teóricos
começaram a clamar contra determinados métodos pedagógicos e o que consideravam
autonomia excessiva dos professores, primeiro, e emergiram as primeiras
tendências para encarar a Educação como serviço passível de ser submetido a
regras de mercado (com o concomitante discurso da liberdade de escolha por
parte das famílias), depois, logo surgiram as pressões para introduzir nos
sistemas de ensino instrumentos que tudo medissem, particularmente resultados.
Recorde-se,
a propósito, duas referências incontornáveis, que continuam a produzir efeitos
retardados entre nós e que nos levam aos ventos que sopraram de Inglaterra em
1976 e dos EUA em 1983. Refiro-me à iniciativa reformista de James Callagahan
sobre Educação, que ficaria conhecida por “The Great Debate”, em
que o primeiro-ministro de então do Reino Unido lamenta a falta de
rentabilidade dos professores e das escolas, pede maior controlo da qualidade
dos docentes e clama pela reorientação precoce da educação para os aspectos
vocacionais, qual discurso profético que seria retomado pelo nosso ministro da
Educação, 43 anos mais tarde. E refiro-me ao relatório A Nation at Risk: The Imperative for Educational
Reform,
produzido a pedido de Ronald Reagan, cuja violência classificativa do trabalho
dos professores e da escola americana está bem traduzida nesta frase, que o
integra, a qual, fora ela do conhecimento do nosso primeiro-ministro e
certamente teria substituído, 32 anos volvidos, a metáfora da salsicha
educativa: “Se um
poder estrangeiro tivesse tentado impor à América a mediocridade do desempenho
educacional que hoje existe, deveríamos ter encarado esse acto como um acto de
guerra.”
Não
é, portanto, de modo solitário no contexto internacional que a novilíngua
classificativa portuguesa em matéria de Educação se tem desenvolvido centrada
em metas, testes e exames, apesar de todos sabermos que nenhum sistema sério de
prestação de contas em Educação se esgota no despejo sistemático sobre a
sociedade dos resultados de testes, mesmo que estandardizados, e de exames
nacionais. Tanto pior quando esses resultados de alunos são o critério primeiro
para avaliar escolas e professores. Mais: mostra-nos a história recente que os
governos que assim procederam acabaram, por via das ideologias neoliberais que
adoptaram, a utilizar os resultados como estratégia para induzir medidas de
privatização e promoção de lógicas de educação como serviço sujeito a regras de
mercado.
É tempo, pois, de procedermos
a uma reflexão despida de preconceitos ideológicos sobre o seu contributo
técnico para a decantada “accountability” educacional. Porque muito
do que deve contar em Educação não pode ser medido e é de comparação difícil. Porque,
no dizer de Licínio Lima, “enquanto
orientação política, a educação contábil evidencia uma alta capacidade de
discriminação da educação que conta e da educação que não conta, ou conta menos”.
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