É
ponto assente que o atentado perpetrado a semana passada contra os jornalistas
e cartoonistas do Charlie Hebdo é um crime inqualificável que não tem perdão. Não
pode haver outra opinião sobre o acto bárbaro que sucedeu em Paris. No entanto, todas as moedas têm duas faces e,
a partir daqui, há que procurar as explicações para tão infausto acontecimento
de modo a acautelar o futuro e não só. Como muito bem afirma o Prof. Boaventura
Sousa Santos no seguinte texto que assina hoje no Público, há uma análise
urgente que se tem de fazer, para a qual aponta algumas “pistas”.
O
texto é longo mas a sua leitura vale a pena.
O
crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartoonistas do Charlie
Hebdo torna muito difícil uma análise serena do que está envolvido neste
ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões
futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear
um fogo que amanhã pode atingir as nossas consciências. Eis algumas das pistas
para tal análise.
A luta contra o terrorismo, tortura e democracia. Não se podem estabelecer
ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus
aliados têm vindo a travar desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a
extrema agressividade do Ocidente tem causado a morte de muitos milhares de
civis inocentes (quase todos muçulmanos) e tem sujeitado a níveis de tortura de
uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as suspeitas são
meramente especulativas, como consta do recente relatório presente ao Congresso
norte-americano. E também é sabido que muitos jovens islâmicos radicais
declaram que a sua radicalização nasceu da revolta contra tanta violência
impune. Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de
violência é continuar a seguir as mesmas políticas que a têm alimentado como é
agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade
constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não declarado
está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e julgados, devem
ser abatidos, que este facto não representa aparentemente nenhuma contradição
com os valores ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa
intensidade. Quem ganha com ela? Certamente não o partido Podemos em Espanha ou
o Syriza na Grécia.
A liberdade de expressão. É um bem precioso mas tem
limites, e a verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos por aqueles
que defendem a liberdade sem limites sempre que é a "sua" liberdade a
sofrê-los. Exemplos de limites são imensos: se em Inglaterra um manifestante
disser que David Cameron tem sangue nas mãos, pode ser preso; em França, as
mulheres islâmicas não podem usar o hijab;
em 2008 o cartoonista Maurice Siné foi despedido do Charlie Hebdo por ter escrito uma crónica
alegadamente antissemita. Isto significa que os limites existem, mas são
diferentes para diferentes grupos de interesse. Por exemplo, na América Latina,
os grandes media,
controlados por famílias oligárquicas e pelo grande capital, são os que mais
clamam pela liberdade de expressão sem limites para insultar os governos
progressistas e ocultar tudo o que de bom estes governos têm feito pelo
bem-estar dos mais pobres. Aparentemente, o Charlie Hebdo não reconhecia limites para insultar os
muçulmanos, mesmo que muitos dos cartoons fossem
propaganda racista e alimentassem a onda islamofóbica e anti-imigrante que
avassala a França e a Europa em geral. Para além de muitos cartoons com o Profeta em poses
pornográficas, um deles, bem aproveitado pela extrema-direita, mostrava um
conjunto de mulheres muçulmanas grávidas, apresentadas como escravas sexuais do
Boko Haram, que, apontando para a barriga, pediam que não lhes fosse retirado o
apoio social à gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o islão, as mulheres e o
Estado social. Ao longo dos anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se
sentindo ofendida por esta linha editorial, mas igualmente foi pronta no seu repúdio
deste crime bárbaro. Devemos, pois, refletir sobre as contradições e
assimetrias na vida vivida dos valores que cremos serem universais.
Tolerância e "valores ocidentais". O contexto em que o crime
ocorreu é dominado por duas correntes de opinião, nenhuma delas favorável à
construção de uma Europa inclusiva e intercultural. A mais radical é
frontalmente islamofóbica e anti-imigrante. É a linha dura da extrema-direita
em toda a Europa e da direita, sempre que se vê ameaçada por eleições próximas
(o caso de Antonis Samara na Grécia). Para esta corrente, os inimigos da nossa
civilização estão entre nós, odeiam-nos, têm os nossos passaportes, e a
situação só se resolve vendo-nos nós livres deles. A outra corrente é a da
tolerância. Estas populações são muito distintas de nós, são um fardo, mas
temos de as "aguentar", até porque nos são úteis; no entanto, só o
devemos fazer se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o
que são os "valores ocidentais"? Depois de muitos séculos de
atrocidades cometidas em nome deles dentro e fora da Europa – da violência
colonial às duas guerras mundiais –, exige-se algum cuidado e muita reflexão
sobre o que são esses valores e por que razão, consoante os contextos, ora se
afirmam uns ora se afirmam outros. Por exemplo, ninguém põe hoje em causa o
valor da liberdade, mas já o mesmo não se pode dizer dos valores da igualdade e
da fraternidade. Ora, foram estes dois valores que fundaram o Estado social de
bem-estar que dominou a Europa democrática depois de Segunda Guerra Mundial. No
entanto, nos últimos anos, a proteção social, que garantia níveis mais altos de
integração social, começou a ser posta em causa pelos políticos conservadores e
é hoje concebida como um luxo inacessível para os partidos do chamado "arco
da governabilidade". A crise social causada pela erosão da proteção social
e pelo aumento do desemprego, sobretudo entre jovens, não será lenha para o
fogo do radicalismo por parte dos jovens que, além do desemprego, sofrem a
discriminação étnico-religiosa?
O choque de fanatismos, não de civilizações. Não estamos perante um
choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a
islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não
apareçam como tal por nos serem mais próximos. A história mostra como muitos
dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses económicos
e políticos que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais
fanatismos. Na Europa e suas áreas de influência é o caso das cruzadas, da
Inquisição, da evangelização das populações coloniais, das guerras religiosas e
da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma religião tão pacífica como o budismo
legitimou o massacre de muitos milhares de membros da minoria tamil do Sri
Lanka; do mesmo modo, os fundamentalistas hindus massacraram as populações
muçulmanas de Gujarat em 2003; é também em nome da religião que Israel continua
a impune limpeza étnica da Palestina e que o chamado Emirado Islâmico massacra
populações muçulmanas na Síria e no Iraque. Várias perguntas sem resposta por
agora. A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas
populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo?
Os diferentes extremismos opõem-se ou articulam-se? Quais as relações entre os
jihadistas e os serviços secretos ocidentais? Por que é que os jihadistas do
Emirado Islâmico, que são agora terroristas, eram combatentes de liberdade
quando lutavam contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirado Islâmico
seja financiado pela Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos aliados do
Ocidente? Uma coisa é certa, pelo menos na última década, a esmagadora maioria
das vítimas de todos os fanatismos (incluindo o islâmico) são populações
muçulmanas não fanáticas.
O valor da vida. A repulsa total que sentimos
perante estas mortes deve-nos fazer pensar por que razão não sentimos a mesma
repulsa perante um número igual ou muito superior de mortes inocentes em
resultado de conflitos que, no fundo, talvez tenham algo a ver com a tragédia
do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens
foram mortos no Iémen num atentado bombista. No verão passado, a invasão
israelita causou a morte de 2000 palestinianos, dos quais cerca de 1500 civis e
500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por
defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em
Ayotzinapa. Certamente que a diferença na nossa reação não pode estar baseada
na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a
vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes
noutras religiões. Será então porque estes últimos estão mais longe de nós ou
conhecemo-los pior? Será porque os grande media e
os líderes políticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses
outros, quando não os demonizam ao ponto de nos fazerem pensar que eles não
merecem outra coisa?
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