Uma
ideia que começa a difundir-se na Europa é que o resultado das eleições na
Grécia teve o condão de abalar as convicções dos adeptos do pensamento único
completamente instalados nas suas teses de que não havia alternativa à asfixia
democrática que se vive no continente europeu. Era assim e não poderia ser de
outra maneira. O caminho da austeridade violenta e do empobrecimento forçado
dos povos era a única alternativa. Mas esta via está a ser muito contestada por
cada vez mais sectores dominantes da sociedade e já ninguém a leva
verdadeiramente a sério ainda que exteriormente não o queiram demonstrar.
O
nervosismo evidenciado pelos governos de Portugal e Espanha irá converte-se em
desespero com o aproximar das eleições deste ano, quando os povos ibéricos se
aperceberem que foram burlados com a austeridade que lhes foi imposta como
solução de problemas que, afinal, só se agravaram.
As
críticas evidenciadas por muitos sectores de esquerda, então catalogados de
radicais, são agora voz corrente em todo o espectro político, pelo
indesmentível realismo que contêm.
O
texto seguinte, da autoria de José Vitor Malheiros, que transcrevemos do
Público de hoje, parte das conhecidas afirmações recentes do Presidente da
Comissão Europeia sobre a actuação da troika, para criticar fortemente a
passividade do governo português perante os burocratas daquela organização.
1.
“Pecámos contra a dignidade dos povos, nomeadamente na Grécia e em Portugal e
muitas vezes na Irlanda”. As declarações do presidente da Comissão Europeia,
Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação da troika,
perante os representantes dos Estados-membros e transmitidas pelos órgãos de
comunicação social, constituem um mea culpa formal e em termos raramente
ouvidos da boca de um político.
Juncker
considerou que a troika era
um órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão Europeia agiu de forma
errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de austeridade aos
Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker considerou que, no
domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve ser revisto” e
admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele que foi
presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições do
passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a troika foi ineficaz. Ao usar a
expressão que usou, o presidente da Comissão introduziu um julgamento moral que
não pode deixar de ser pesado. Para Juncker, a acção da troika não foi apenas tecnicamente
errada. Ela foi também politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
É
impossível não concordar com o político luxemburguês quando diz que faz figura
de parvo ao admitir agora isto, enquanto se calou antes, mas é evidente que
Juncker, que de estúpido terá pouco, o diz hoje porque o pode dizer sem grandes
custos e não o podia dizer antes sem arriscar a cabeça.
O
que faz com que Juncker tenha ganho este espaço de manobra não é apenas o facto
de ser hoje presidente da Comissão Europeia, mas o facto de a posição do novo
Governo grego ter obrigado as instituições europeias, os governos europeus, as
instituições financeiras, os analistas, os media e
a opinião pública a uma reavaliação do papel e da legitimidade da troika que dificilmente poderia ter
outro resultado.
Se
não houvesse outra razão, esta seria já uma boa razão para nos congratularmos
com a eleição do Syriza na Grécia.
2.
As declarações de Juncker são raras num político, mas não são a história toda.
E a história toda poderia fazer deste episódio um case study nos cursos de relações
internacionais, se Passos Coelho e o seu Governo tivessem relevância política
ou intelectual para ficarem na história.
A
história completa-se com a reacção do Governo português às declarações de
Juncker, pela boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do Conselho de Ministros
e dos Assuntos Parlamentares, que considerou as declarações do presidente da
Comissão Europeia “infelizes” e garantiu que a dignidade de Portugal “nunca foi
beliscada” pela troika.
Como
se pode entender que, por um lado, a Comissão Europeia diga que ofendeu a
dignidade dos portugueses, que se penitencie pelo facto e que afirme que isso
não pode voltar a acontecer, e que, por outro lado, o Governo português
responda que não senhor, que a dignidade dos portugueses não foi ofendida, que
não há razão para penitências nem para falar de indignidade?
A
explicação é chocante, mas simples: acontece que Jean-Claude Juncker é mais
exigente na defesa da dignidade dos portugueses do que o Governo português.
Para
Paulo Portas (que instituiu oficialmente o regime de “protectorado” de Portugal
sob a tutela das potências europeias sem o mínimo sobressalto patriótico, como
se se tratasse apenas de um contratempo menor) e para Pedro Passos Coelho e
Maria Luís Albuquerque, para quem servir os credores de Portugal é a mais alta
das honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender a dignidade dos
portugueses, porque o conceito de dignidade do povo português é algo
extremamente vago, que se encontra subalternizado em relação à vassalagem
devida aos mais fortes e à admiração devida aos mais ricos.
Outra
razão por que o Governo português e o seu ministro porta-voz receberam mal a
afirmação de Juncker é porque ele fechou, de facto, a porta à troika e disse que esta indignidade
não pode voltar a acontecer, mas, caso se apresentasse outra oportunidade, o
Governo em bloco gostaria de obedecer de novo às ordens da troika, mesmo sendo ela arrogante,
antidemocrática e ineficaz, porque sabe que isso agrada aos seus maiorais.
3. Quando o Governo grego
disse que não negociaria com a troika e
acabou por aceitar negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão Europeia, o
FMI e o Banco Central Europeu, houve quem tivesse falado de uma mera “questão
de semântica”, já que estas três instituições eram, de facto, a troika. Mas há uma diferença política
fundamental. Há um mundo de diferença entre ter ministros a negociar com
Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os mesmos ministros a obedecer
a três burocratas com imenso poder, imensa arrogância, nenhuma legitimidade e
nenhuma flexibilidade. Para perceber como isto é diferente, basta ver as
diferenças entre o discurso dos dirigentes do FMI e a posição do funcionário do
FMI na troika durante o “programa”
português. A Grécia conseguiu arredar a troika do
panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a Europa.
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