terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

HÁ ALTERNATIVA À AUSTERIDADE


Uma ideia que começa a difundir-se na Europa é que o resultado das eleições na Grécia teve o condão de abalar as convicções dos adeptos do pensamento único completamente instalados nas suas teses de que não havia alternativa à asfixia democrática que se vive no continente europeu. Era assim e não poderia ser de outra maneira. O caminho da austeridade violenta e do empobrecimento forçado dos povos era a única alternativa. Mas esta via está a ser muito contestada por cada vez mais sectores dominantes da sociedade e já ninguém a leva verdadeiramente a sério ainda que exteriormente não o queiram demonstrar.
O nervosismo evidenciado pelos governos de Portugal e Espanha irá converte-se em desespero com o aproximar das eleições deste ano, quando os povos ibéricos se aperceberem que foram burlados com a austeridade que lhes foi imposta como solução de problemas que, afinal, só se agravaram.
As críticas evidenciadas por muitos sectores de esquerda, então catalogados de radicais, são agora voz corrente em todo o espectro político, pelo indesmentível realismo que contêm.    
O texto seguinte, da autoria de José Vitor Malheiros, que transcrevemos do Público de hoje, parte das conhecidas afirmações recentes do Presidente da Comissão Europeia sobre a actuação da troika, para criticar fortemente a passividade do governo português perante os burocratas daquela organização.
1. “Pecámos contra a dignidade dos povos, nomeadamente na Grécia e em Portugal e muitas vezes na Irlanda”. As declarações do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação da troika, perante os representantes dos Estados-membros e transmitidas pelos órgãos de comunicação social, constituem um mea culpa formal e em termos raramente ouvidos da boca de um político.
Juncker considerou que a troika era um órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão Europeia agiu de forma errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de austeridade aos Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker considerou que, no domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve ser revisto” e admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele que foi presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições do passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a troika foi ineficaz. Ao usar a expressão que usou, o presidente da Comissão introduziu um julgamento moral que não pode deixar de ser pesado. Para Juncker, a acção da troika não foi apenas tecnicamente errada. Ela foi também politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
É impossível não concordar com o político luxemburguês quando diz que faz figura de parvo ao admitir agora isto, enquanto se calou antes, mas é evidente que Juncker, que de estúpido terá pouco, o diz hoje porque o pode dizer sem grandes custos e não o podia dizer antes sem arriscar a cabeça.
O que faz com que Juncker tenha ganho este espaço de manobra não é apenas o facto de ser hoje presidente da Comissão Europeia, mas o facto de a posição do novo Governo grego ter obrigado as instituições europeias, os governos europeus, as instituições financeiras, os analistas, os media e a opinião pública a uma reavaliação do papel e da legitimidade da troika que dificilmente poderia ter outro resultado.
Se não houvesse outra razão, esta seria já uma boa razão para nos congratularmos com a eleição do Syriza na Grécia.
2. As declarações de Juncker são raras num político, mas não são a história toda. E a história toda poderia fazer deste episódio um case study nos cursos de relações internacionais, se Passos Coelho e o seu Governo tivessem relevância política ou intelectual para ficarem na história.
A história completa-se com a reacção do Governo português às declarações de Juncker, pela boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do Conselho de Ministros e dos Assuntos Parlamentares, que considerou as declarações do presidente da Comissão Europeia “infelizes” e garantiu que a dignidade de Portugal “nunca foi beliscada” pela troika.
Como se pode entender que, por um lado, a Comissão Europeia diga que ofendeu a dignidade dos portugueses, que se penitencie pelo facto e que afirme que isso não pode voltar a acontecer, e que, por outro lado, o Governo português responda que não senhor, que a dignidade dos portugueses não foi ofendida, que não há razão para penitências nem para falar de indignidade?
A explicação é chocante, mas simples: acontece que Jean-Claude Juncker é mais exigente na defesa da dignidade dos portugueses do que o Governo português.
Para Paulo Portas (que instituiu oficialmente o regime de “protectorado” de Portugal sob a tutela das potências europeias sem o mínimo sobressalto patriótico, como se se tratasse apenas de um contratempo menor) e para Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, para quem servir os credores de Portugal é a mais alta das honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender a dignidade dos portugueses, porque o conceito de dignidade do povo português é algo extremamente vago, que se encontra subalternizado em relação à vassalagem devida aos mais fortes e à admiração devida aos mais ricos.
Outra razão por que o Governo português e o seu ministro porta-voz receberam mal a afirmação de Juncker é porque ele fechou, de facto, a porta à troika e disse que esta indignidade não pode voltar a acontecer, mas, caso se apresentasse outra oportunidade, o Governo em bloco gostaria de obedecer de novo às ordens da troika, mesmo sendo ela arrogante, antidemocrática e ineficaz, porque sabe que isso agrada aos seus maiorais.
3. Quando o Governo grego disse que não negociaria com a troika e acabou por aceitar negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu, houve quem tivesse falado de uma mera “questão de semântica”, já que estas três instituições eram, de facto, a troika. Mas há uma diferença política fundamental. Há um mundo de diferença entre ter ministros a negociar com Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os mesmos ministros a obedecer a três burocratas com imenso poder, imensa arrogância, nenhuma legitimidade e nenhuma flexibilidade. Para perceber como isto é diferente, basta ver as diferenças entre o discurso dos dirigentes do FMI e a posição do funcionário do FMI na troika durante o “programa” português. A Grécia conseguiu arredar a troika do panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a Europa.

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