Afirmava,
com toda a propriedade, Frei Bento Domingues, no passado domingo no Público que
“a Europa não pode esquecer a sua parte de responsabilidade pelo que se passa
no Médio Oriente”. De facto, todas as guerras, “horrores”, fome, devastações e
mortandades cujas imagens nos chegam diariamente através da televisão têm uma
cumplicidade ainda que indirecta da esmagadora maioria dos actuais governantes
europeus. Perante a mortandade que está a passar-se no Mediterrâneo lavam as
mãos como Pilatos e alguns exprimem com desdém a opinião de que é bom que morram
muitos dos que querem chegar à Europa para desencorajar outros que pretendam
pôr-se a caminho de um lugar onde, pelo menos, possam livrar-se da guerra. A aplicação
prática dos princípios da “solidariedade” e dos “direitos humanos” são aqui
tábua rasa e ficam guardados para atacar adversários políticos que tenham
telhados de vidro nestas áreas mas noutros locais do mundo.
A
demissão da União Europeia no sentido de tomar “medidas para evitar a
catástrofe humanitária dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo” é o tema
de fundo do artigo que José Vitor Malheiros no Público de ontem e que aqui deixamos. Os sublinhados são nossos.
“Demasiado
pouco, demasiado tarde.” É cada vez mais frequente termos de dizer isto da
acção de um Estado, da acção dos governantes.
Pelo
menos sempre que se trata de promover a paz e o desenvolvimento; de promover a
cooperação internacional; de combater a fome, a pobreza e a desigualdade; de
investir na educação, na cultura e na ciência; de proteger o ambiente; de
garantir a defesa da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. E é cada
vez mais frequente, tristemente frequente, sermos obrigados a dizer isto da
acção da União Europeia, dessa União Europeia que nos seduziu com sonhos de
solidariedade e que gosta de se proclamar campeã dos direitos humanos mas que
nos envergonha todos os dias com a sua demissão dos mais elementares deveres
perante os mais fracos, com a sua cupidez em favor dos mais ricos, com a sua
pusilanimidade perante os mais fortes.
A
reunião de quinta-feira passada do Conselho Europeu, onde em teoria os 28
Estados-membros da União Europeia tomaram medidas para evitar a catástrofe
humanitária dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo para tentar chegar à
Europa, é apenas mais um de uma longa lista de lamentáveis exemplos de
demissão.
“Demasiado
pouco, demasiado tarde.” Às vezes quase nada, tarde demais. Quase sempre
medidas para dar títulos de jornal apaziguadores, mas que não atacam as raízes
dos problemas e apenas permitem descansar as consciências dos menos exigentes.
Onde
estão os políticos europeus que defendem algo de que nos possamos orgulhar?
Desapareceram. Mesmo quando parecem existir num dado momento, desintegram-se ao
chegar ao primeiro Conselho Europeu. A União Europeia dissolve toda a ideia
política e apenas deixa negócios com um cheiro de enxofre no ar.
Onde
estão os políticos europeus que defendem essa ideia de uma Europa da
solidariedade, dos direitos e do progresso e que têm a coragem de a traduzir em
medidas políticas? Que agem por imperativo de consciência, que agem mesmo
quando não é possível contentar todos, que não esperam pelos media para saber o que devem
pensar, que têm convicções que não os envergonham, que não têm medo de
desagradar a essa extrema-direita para onde estão a ir tantos votos? Estarão
todos mortos? Estarão todos nos partidos emergentes que ainda não chegaram ao
poder? Ou estará a vontade política a concentrar-se apenas nos partidos
xenófobos da extrema-direita? Será o condomínio fechado com os pobres a tentar
escalar o muro o único sonho possível nesta Europa de banqueiros-piratas e de
políticos-mordomos?
As medidas tomadas no último Conselho Europeu
não são apenas poucas e tardias. São uma vergonha e são ineficazes.
União Europeia triplica orçamento da missão de
vigilância do Mediterrâneo, titulava
este jornal. Parece bom. Só que as notícias explicam que a “triplicação” da UE
fica aquém do orçamento que, no ano passado, a Itália sozinha atribuía às
operações de salvamento de refugiados no Mediterrâneo, com a operação Mare Nostrum, terminada em Outubro de
2014 porque a UE não a quis apoiar.
A
UE quer reduzir a má imprensa mas sem mexer uma palha, gastando pouco e fazendo
menos. O objectivo da maior parte dos países europeus, como o Governo de
David Cameron dizia sem vergonha até há pouco, é que continuem a morrer
imigrantes em massa no Mediterrâneo, para que a Europa não se torne mais
atraente para os que ficam. O abjecto fraseado britânico afirma que o
alargamento das operações de salvamento no Mediterrâneo constitui um “pull factor” que encoraja a imigração
clandestina para a UE. “Pull factor”.
Não se devem salvar pessoas porque isso constitui um “pull factor”. Nem vale a pena argumentar
que quando se suspendeu o Mare Nostrum
a imigração aumentou. Não vale a pena tentar explicar que aquelas crianças
que morrem afogadas no Mediterrâneo são de carne e osso como os filhos do senhor
Cameron, que a morte de cada um deles é tão trágica como foi a morte do
primogénito do senhor Cameron, que cada um deles vale o mesmo que cada um dos
nossos filhos. Seria melhor matá-los à vista para os desanimar de virem? A
Europa deve condenar à morte as famílias cujos pais querem proporcionar uma
vida decente aos seus filhos?
A UE, se tivesse um mínimo de
decência ou de vergonha, deveria reconhecer a importância de realizar as
necessárias operações de salvamento no Mediterrâneo e não apenas ao longo das
suas costas. Deveria discutir seriamente (em casa e com os seus vizinhos de
África e do Médio Oriente) uma política de imigração que não deveria ser outra
coisa senão generosa e pôr em prática as ferramentas necessárias para fornecer
os devidos vistos a refugiados políticos e económicos. E deveria construir uma
verdadeira política externa que apoiasse os esforços em prol da pacificação dos
países em guerra e do desenvolvimento dos países mais pobres. Devia. Seria uma
política externa de que nos poderíamos orgulhar, justa, exaltante e
mobilizadora. Mas esta é uma UE da qual não se pode sequer esperar decência.