A
realidade do desemprego em Portugal – todos os que estão mais atentos a esta
temática o sabem – não é aquela que é propagandeada pelo Governo e pela comunicação
social que lhe é afecta. Quer esta gente queira quer não, os números do
desemprego ou do desemprego oculto são muito mais dramáticos do que aqueles que
nos estão a impingir. Uma coisa é a propaganda política governamental que só
afirma o que lhe convém e outra é a realidade dos factos tratada de forma
científica como se faz no Observatório
sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade
de Coimbra.
No
texto seguinte que retirámos do Público de hoje, precisamente quatro cientistas
sociais do CES (*) dão-nos em poucos parágrafos a ideia do que “é preciso saber
acerca do desemprego para compreender o que se passou com as estatísticas”.
Segundo
as estatísticas oficiais do emprego elaboradas pelo Instituto Nacional de
Estatística (INE), entre o 1.º trimestre de 2013 e o 4.º trimestre de 2014
passou a haver 197,7 mil desempregados a menos, mas apenas foram criados 54 mil
empregos. O que se passou? Será que as estatísticas refletem adequadamente as
realidades do emprego e do desemprego?
Esta
era, em traços gerais, a questão abordada por um estudo do Observatório sobre
Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais (CES), elaborado pela equipa
que subscreve este texto e divulgado no dia 31 de março, com o título Crise e Mercado de Trabalho:
Menos Desemprego sem mais Emprego?.
O estudo foi apresentado e posto à discussão numa sessão pública que contou com
a participação do atual presidente do IEFP, Jorge Gaspar, e de um seu
predecessor, Francisco Madelino. Essa é a boa prática que procuramos seguir:
difundir os resultados da investigação e sujeitá-los à crítica, sempre na
disposição de corrigir eventuais erros e omissões.
Acontece,
porém, que numa crónica assinada por João Miguel Tavares, publicada no PÚBLICO
de 2 de Abril (Mas
que Observatório é este?),
o estudo tornou-se pretexto para um ataque infundado, porque ignorante, ao CES
e ao seu diretor, Boaventura Sousa Santos, ao Observatório e ao seu
coordenador.
O
CES e o Observatório não dependem evidentemente da avaliação de crónicas. Os
investigadores do CES orgulham-se de ver reconhecido, no plano nacional e
internacional, o trabalho do seu diretor e o de todos quantos têm contribuído
para o papel que atualmente o CES desempenha na criação de pensamento e na sua
divulgação nacional e internacional. Os resultados obtidos em concursos
nacionais e internacionais, nomeadamente os do European Reasearch Council, e a
apreciação pública do nosso trabalho são a avaliação que mais importa.
No
entanto, não se pode deixar passar a referida crónica em branco por duas
razões: porque difunde um conjunto de erros que revelam o mais completo
desconhecimento de questões básicas sobre o desemprego e porque, não obstante
essa sua ignorância, arroga-se a pretensão de julgar a qualidade da
investigação científica.
O
que é então preciso saber acerca do desemprego para compreender o que se passou
com as estatísticas?
Alteração
de critérios estatísticos: em 2011, o INE mudou de critério estatístico — “as
pessoas a frequentar Planos Ocupacionais de Emprego, promovidos pelo IEFP, não
eram consideradas necessariamente empregadas no questionário anterior, mas
passaram a ser no questionário atual”, pode ler-se numa nota metodológica do
INE. Em consequência, desde 2013, com o aumento do número desempregados ocupados
em planos ocupacionais, o número de desempregados diminuiu. Ou seja, o
desemprego foi subavaliado e o emprego sobreavaliado.
Emigração: a
taxa de desemprego é um rácio entre o número de desempregados e a população
ativa, isto é, a soma da população empregada com a população desempregada. Mas
quem acompanha menos estes assuntos desconhece que este rácio pode descer, não
porque alguns desempregados encontraram emprego (como seria adequado), mas
porque houve desempregados que emigraram. Vejamos um exemplo numérico muito
simples. No ano A, havia um milhão de desempregados e quatro milhões
empregados. A população ativa era de cinco milhões. A taxa de
desemprego era de 20%. No ano B, 250 mil desempregados emigraram. A população
ativa passou a ser de 4,75 milhões e a taxa de desemprego baixou para 16%.
Algo semelhante aconteceu precisamente em Portugal. De facto, de 2011 a 2013, o
número de emigrantes foi sempre em crescendo. A taxa de desemprego foi afetada
pela emigração.
Inativos
“desencorajados”, “indisponíveis” e subemprego: quem leia, pela primeira vez,
estudos sobre as estatísticas de emprego surpreender-se-á com estes critérios.
Mas na realidade eles são considerados internacionalmente no apuramento do
“desemprego em sentido lato”. Quem não sabe pode pensar — como se refere na
crónica — que “inativos desencorajados” são “aqueles que por opção de vida não
querem trabalhar, como Kiki Espírito Santo”. Mas na verdade, este conceito
decorre de convenções da OIT que procuram dar visibilidade a diversas formas de
desemprego oculto. Definição do INE para “inativo desencorajado”: “Indivíduo
com idade mínima de 15 anos que, no período de referência, não tem trabalho
remunerado nem qualquer outro, pretende trabalhar, está ou não disponível para
trabalhar num trabalho remunerado ou não, mas que não fez diligências no
período de referência para encontrar trabalho.” Para todos os efeitos, menos o
estatístico, um inativo desencorajado é alguém que quer trabalhar e não tem
trabalho, é um desempregado. Entre 2011 e 2014, o número de pessoas
desencorajadas, indisponíveis ou que gostavam de trabalhar mais horas aumentou
substancialmente — de 415 mil para 546 mil.
Pessoas
menos conhecedoras poderão ignorar que possa haver desempregados não tidos em
conta por força de critérios estatísticos. Mas na realidade, desde 2013, o
conjunto dos desempregados não considerados nas estatísticas — incluindo os
“desempregados ocupados”, os “inativos desencorajados” e parte da emigração —
ultrapassou o dos desempregados “oficiais”. Tal facto, sem precedentes, suscita
sérias dúvidas sobre a adequação da taxa de desemprego como indicador em tempos
de crise prolongada. Descontadas estas distorções estatísticas, a taxa de
desemprego “real” estabilizou em níveis muitos elevados, contrariamente ao que
aconteceu com a taxa “oficial”.
Todos
têm o direito de “exprimir e divulgar livremente o seu pensamento”, mas
igualmente têm o direito de “informar, de se informar e de ser informados”.
Neste caso, não só foi difundida informação enganadora, como foi dado espaço a
uma pretensão ignorante de julgar o que é, e não é, ciência.
(*) Manuel Carvalho da Silva, José
Castro Caldas, João Ramos de Almeida e Nuno Serra
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