quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

CRIMINALIZAR OS COMPRADORES DE SEXO?



Os exemplos de boas práticas que vêm de fora devem ser sempre matéria de reflexão no sentido de poderem ser aplicadas em Portugal.
Como bem sabemos, a prostituição feminina é criminalizada em muitos países e o alvo são as mulheres que se dedicam a essa prática da venda de sexo. Na verdade, nada justifica que esta situação se mantenha pois, como muito bem entende o movimento feminista sueco, “a venda de sexo é sempre uma forma de agressão” o que leva a que a situação se deva colocar ao contrário, ou seja, criminalizar o comprador.
Segundo afirma Ana Cristina Pereira no seguinte artigo de opinião que transcrevemos do “Público” deste domingo, esta concepção do movimento feminista sueco tem “vindo a ser exportada” e, entendemos nós, merece mais divulgação do que aquela que tem tido até agora.

Chamava-se Eva-Marree, mas eu conhecia-a como Petite Jasmine num luxuoso hotel de Estocolmo. Circulava nesse meio exclusivo. Bastava-lhe trabalhar duas ou três vezes por mês. Cobrava 450 euros por hora. “Nada mau.”
Anunciava os seus serviços num blogue chamado Njutning till Salu, traduzível por “prazer à venda”. Era lá que a abordavam. “Se me agrada, falo por email, por telefone. Só depois marco um encontro. O primeiro é sempre num local público.”
Essa estratégia, que antecedia a decisão final de avançar ou não avançar, também a ajudava a despistar a Unidade de Prostituição. Nunca sabia se havia algum elemento a observá-la. Podia ser seguida até entrar no quarto ou surpreendida já no acto. E o cliente teria de dizer algo convincente.
O sistema legal da Suécia assume que quem compra sexo é sempre um agressor e que quem vende sexo é sempre uma vítima, mesmo que o faça de livre vontade. Nem reconhece tal vontade como autêntica. “Algo aconteceu com elas”, disse-me a então procuradora-geral adjunta Lise Tamm.
A ideia de que a compra e venda de sexo é sempre uma forma de agressão despontou no seio do movimento feminista sueco e tem vindo a ser exportada, ainda que com diferentes nuances. Outra vertente do feminismo, mais assente na liberdade de decidir sobre o próprio corpo, resultou em políticas bem diferentes, por exemplo, na Alemanha, onde a venda de sexo está regulada como qualquer trabalho. Portugal está no meio. Ignora adultos que compram sexo a adultos, desde que estes o vendam de livre vontade. Criminaliza, sim, quem se meter no meio para ganhar dinheiro.
Quando a conheci, no princípio do Outono de 2011, Petite Jasmine não poupou críticas ao modelo sueco. A atenção foca-se na segurança do cliente. E aumenta o preconceito. Nada a enfurecia mais do que o efeito disso no exercício das responsabilidades parentais. “Legitima-se a ideia de que uma pessoa não pode ser boa mãe e trabalhadora do sexo ao mesmo tempo.”
Falava por experiência. Batia-se pela guarda dos filhos, uma menina de três anos e um menino de dois. Não os via havia três meses. Mal soubera o que ela andava a fazer, o pai deles alertara os serviços sociais. Primeiro, os serviços viram-na como “uma vítima”. Tentaram “salvá-la”. Como ela recusou esse papel, disseram-lhe que estava “a romantizar”, que tinha uma “falsa consciência”, que não percebia o dano que estava a causar a si própria. Em poucas horas, tiraram-lhe as crianças e entregaram-nas ao ex, apesar de antes lhe terem dito que o deixasse, porque era agressivo. O tribunal optou pela guarda partilhada. 
Quando a conheci, ela estava à espera que a decisão judicial fosse cumprida. Só agora soube que isso nunca chegou a acontecer. E que o ex-namorado acabou por matá-la no dia 11 de Julho de 2013. O jornalismo tem destas coisas. Vamos conhecendo pessoas com as quais por vezes falámos sobre os assuntos mais íntimos e nunca mais as voltamos a ver.
A propósito do Dia Internacional Contra a Violência Sobre Trabalhadores do Sexo, que se assinala no dia 17 de Dezembro, a secretária-geral da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, Ana Sofia Fernandes, deu uma entrevista à TSF a defender a criminalização dos clientes. E eu lembrei-me dela.
Quando ouço alguém dizer que o modelo sueco protege as pessoas que vendem serviços sexuais, lembro-me sempre da Petite Jasmine e da Pye Jakobsson, líder da Rose Alliance, uma associação de trabalhadores do sexo a que ela se juntara. Para esta última, o grande resultado disso também era o reforço do estigma, “a pior violência”. A actividade entrou na clandestinidade: quem está na rua tem pouquíssimo tempo para avaliar um cliente antes de entrar no carro; quem atende num apartamento é despejado mal o senhorio descobre; ninguém pode partilhar um espaço para receber clientes. 
Alexandra Oliveira, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto que estuda esta matéria, é que me deu a notícia. “É considerada a primeira vítima do modelo sueco.”

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Numa entrevista publicada num blogue dedicado ao trabalho sexual, Pye conta que o ex-companheiro de Petite Jasmine foi arranjando entraves para evitar cumprir a decisão judicial. Houve outras decisões semelhantes. À quarta, alegando que as crianças já não estavam habituadas à mãe, o tribunal optou por atribuir guarda exclusiva ao pai. Ela teria visitas.

Petite Jasmine recorreu ao Supremo Tribunal. E, no Verão de 2013, ia por fim voltar a estar com os filhos, ainda que na presença de um trabalhador social, que a ajudaria a reaproximar-se deles. Encontrou-se com a menina. Ia encontrar-se com o menino. Cruzaram-se no autocarro. Começaram a discutir. O ex acabou por matá-la e por esfaquear a assistente social. 
Era um homicídio semelhante a muitos dos que ocorrem num contexto de violência doméstica. Ao que tem dito Pye, o ex-namorado já a perseguira e ameaçara várias vezes. Com uma diferença: ele sentia-se legitimado na sua acção e ela sentia que não podia dizer à polícia que estava a ser perseguida e ameaçada pelo pai dos filhos dela por fazer o que fazia. Queixou-se aos serviços sociais, que acabaram por testemunhar em seu favor no processo de regulação de responsabilidades parentais. Agora, é um ícone de quem pede a descriminalização.

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