Há um ditado popular segundo o qual “em
tempo de guerra não se limpam armas”. Pois bem, em tempo de imensos perigos à
espreita por via das alterações climáticas, todas as opiniões bem fundamentadas
que chamem a atenção das pessoas para os perigos que se avizinham são bem-vindas.
Está neste caso João Camargo (JC), conhecido investigador em alterações climáticas
que, através de frequentes intervenções públicas, quer faladas quer escritas,
vem denunciando as más práticas a nível global que continuam a contribuir para
a destruição da vida neste planeta, coisa que pode estar menos longe no tempo
do que aquilo que muitos nos pretendem fazer crer.
O texto seguinte constitui um artigo de
opinião que JC assina no “Público” de hoje e cuja leitura recomendamos
vivamente pelas questões de fundo que levanta.
O acontecimento mais relevante da COP-24
foi a rejeição do mais recente documento do Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (IPCC) pelos Estados Unidos, Rússia, Arábia Saudita e
Kuwait. Este é o corolário dos Estados-pária que assumem que a sua
preponderância económica é mais importante do que a continuação da civilização
humana. O sentimento de choque na imprensa e nos cientistas só se explica por
uma enorme ingenuidade e pelo apagar voluntário das memórias dos últimos 30
anos.
Em 1992, antes da Cimeira da Terra,
George Bush já o tinha dito com todas as letras: “O estilo de vida americano
não é negociável. Ponto.” Desde então os EUA boicotaram todos os acordos
climáticos, de Quioto a Paris. São o principal actor do falhanço em termos de
redução de emissões de gases com efeito de estufa. À escala global, desde 1992,
só a crise financeira (também de origem nos EUA) fez as emissões mundiais
caírem, apesar de taxas de carbono e comércio de emissões. Em 2018, novo
recorde de emissões. O metano também disparou, mas a sua contabilidade é mais
frágil, os EUA o principal emissor, depois da revolução do fracking.
Agora, os EUA co-lideram o esforço para bloquear a ciência climática, que diz
que acabou o business as usual e que é preciso cortar 50% de todas as
emissões até 2030.
Os EUA são o baluarte e o braço armado
do capitalismo global. E se o capitalismo global tem dificuldades em fazer
dinheiro com as alterações climáticas, os EUA tudo farão para evitar que se
fale sequer de alterações climáticas. E, assim, Trump mandou apagar as
referências ao clima nos sites governamentais, mandou a NASA parar de
recolher dados climáticos, anunciou a saída do Acordo de Paris e, até lá, o seu
boicote. A aliança EUA-petroestados, em particular com a Rússia, é uma resposta
directa ao fraco Acordo de Paris e a ascensão da extrema-direita negacionista
em vários países relevantes dá-nos conta das respostas capitalistas à maior
crise alguma vez criada: começam pelo negacionismo, passam pelo boicote e
sabotagem e culminarão na assunção de projectos políticos de genocídio (os
povos mais vulneráveis às alterações climáticas e os refugiados climáticos já
são os primeiros alvos). Para desconversar, falam das emissões da China, como
se os produtos manufacturados aí não acabassem no Ocidente.
Trumps e Bolsonaros
usam a ignorância como medalhas ao peito. Mas não nos enganemos: eles replicam
e ecoam sectores da população que valorizam a ignorância. O medo do
desconhecido, após o falhanço do triunfalismo capitalista, a ascensão das
guerras, terrorismos e da crise ambiental global empurram as pessoas para a
valorização da ignorância: porquê valorizar o conhecimento, quando ele tem
tanto de assustador para nos dizer nestes tempos? Também se criou o apelo de
recuar 50 anos no tempo, quando a ignorância imperava ainda mais, criando um
imaginário idílico e irreal de outros tempos para, com ignorância histórica,
idolatrar um passado que nunca existiu. Mas a manutenção das propostas destes
líderes produzirá um recuo de centenas de milhares anos, para um clima incapaz
de suster materialmente a civilização humana.
Quem leu e promoveu este programa
político foi Vladimir Putin — a total dependência da economia russa da produção
de petróleo e gás levou-o a assumir que um acordo climático que travasse as
emissões de gases com efeito de estufa levaria ao colapso da Rússia, pela
segunda vez em menos de 30 anos. Por isso, pôs mãos ao trabalho para apoiar as
forças políticas no Ocidente que conseguissem travar qualquer acção climática
significativa. O seu enorme sucesso só é surpreendente para quem não olhou para
a maneira como a União Europeia lidou com a crise das dívidas soberanas. O
legítimo descontentamento popular dos povos é pasto fértil para a proposta de
um regresso ao passado e a “certezas” autoritárias num tempo em que a
autoridade nada tem para oferecer aos povos. Mais do que coragem ou esperança,
o que a liderança política do capitalismo ocidental ofereceu foi cobardia.
As elites “centristas” que geriram a
União Europeia e os EUA expandiram o pasto para a ignorância autoritária e a
fertilidade para a inacção frente ao caos climático. E, pior, para a acção
errada, transferindo o ónus da transição energética para os combustíveis,
afectando as populações mais pobres e que dependem do transporte individual,
sem alternativas para sair do ghetto dos arredores das cidades
turistificadas. A revolta contra Macron é uma revolta contra a cobardia e a
injustiça (também climática). São estes os heróis que o capitalismo tem para
mostrar ao mundo: Macrons, Trudeaus, Junckers e Barrosos.
O capitalismo empurra para a
confrontação, mas isto serve de pouco. Para travar o aumento da temperatura nos
1,5º ou 2ºC, o Acordo de Paris teria de resolver a dependência em combustíveis
fósseis das economias e das populações. Teria de acautelar que transições como
a da economia russa para um novo paradigma energético não seriam colapsos como
a queda da União Soviética. Garantiria justiça no processo de transição, para
trabalhadores e populações, para o Sul e o Norte global, para países
“desenvolvidos” e sobreexplorados. Garantiria formação e novos empregos para
mineiros do carvão e para trabalhadores do fracking nos EUA, para
trabalhadores da central a carvão de Sines, a electrificação de todos os países
africanos, criaria milhões de empregos para o clima. E evitaria conflitos e
guerra, emendando o desconcerto das nações que são as relações internacionais
de hoje.
Precisamos de um “New Deal” climático, mobilizando recursos e
vontades numa escala maior do que aconteceu na II Guerra Mundial. Para isso,
são precisos Estados, mas principalmente são precisas populações e
trabalhadores, para, como ocorreu há 70 anos, haver coragem e mandatos
políticos para mandar a Ford deixar de produzir carros e passar a produzir tanques
(agora autocarros eléctricos), para mandar a General Motors passar a produzir
caças (agora turbinas eólicas), para mandar a Chrysler produzir processadores
(agora painéis solares). É preciso uma política para a revolta e uma revolta
política. No século passado, o perigo era o mundo cair no fascismo; hoje é
deixar de sustentar a civilização. O capitalismo e os mercados não têm nada
para nos oferecer: o objectivo não é fazer dinheiro, é resgatar a civilização
humana, custe o que custar.
Sem comentários:
Enviar um comentário