O cidadão comum de
direita, descarregado de hipocrisia, não tem o mais pequeno problema de assumir
a sua oposição a todas as greves. O mesmo não acontece com os opinadores da
mesma área e próximos do poder assim como com os governantes, todos eles
ardentes defensores do direito à greve, a que, no entanto, acrescentam,
invariavelmente, uma adversativa. Há sempre um “mas” desta gente que, se fosse
levado à prática, acabaria com qualquer situação grevista. A luta da direita e
dos que, não se intitulando de direita, se comportam como tal, vai no sentido
de tornarem letra morta o direito à greve. Tanto opositores como defensores do
direito à greve sabem disto há muito tempo. Numa qualquer ocasião, a direita
vai avançar neste sentido e aí, o PS terá que escolher o campo em que se vai
posicionar, uma vez que, tanto o PCP como o BE não terão força suficiente para
se oporem a um esvaziamento da lei da greve.
Ainda há poucos dias aqui
referimos este tema, a propósito da greve dos professores, uma vez que ela está
a ser alvo de uma imensa campanha baseada no prejuízo que vai causar aos
alunos, escondendo-se a brutalidade das medidas que, o Governo vem tomando na
área da educação, essas sim, altamente lesivas dos interesses dos estudantes,
famílias e país.
O artigo de opinião que José Vítor Malheiros assina hoje no
Público constitui uma excelente forma de esclarecimento da opinião pública,
sobre a greve dos professores, não esquecendo que esta forma de luta causa
algum incómodo, desde logo aos que aderem a ela, porque lhes é descontado esse
dia no ordenado…
A escola pública de qualidade é
mais importante que a data de um exame
Quando alguém diz "Eu sou a
favor das greves..." segue-se, em geral, uma adversativa que precede a
explicação por que, desta vez, nesta data, neste sector e nestas
circunstâncias, a greve é socialmente injusta, moralmente ilegítima,
tacticamente errada ou políticamente contraproducente. As razões por que não se
deve fazer greve desta vez variam em género, em grau e em combinatória, mas o
resultado é sempre o mesmo: a greve é um direito inalienável dos trabalhadores
consagrado na Constituição da República Portuguesa, mas, na opinião das pessoas
que assim falam, deve ser usada apenas quando não possui absolutamente
inconveniente nenhum para ninguém.
Ora a greve não pretende ser uma
arma inócua. A greve é uma arma de último recurso, que se usa quando os
trabalhadores consideram que está em causa a defesa de direitos importantes -
seus ou da sociedade em geral - e quando já falharam as negociações. Se as
negociações são o momento da racionalidade e da discussão, de pesar ganhos e
perdas, de avaliar vantagens e inconvenientes de um lado e de outro, a greve é
o momento da força. A greve não é um recurso retórico. A greve é uma arma que
se usa numa situação de conflito e visa prejudicar o adversário, enfraquecer a
sua posição e, acima de tudo, mostrar a força que o lado em greve possui, para
regressar de novo à mesa das negociações e para conseguir chegar a um acordo
que satisfaça as partes. A greve pretende sempre ser uma chamada à realidade do
outro lado - que, frequentemente, pensa que pode dispensar os trabalhadores e
impor unilateralmente as condições que lhe convêm. Há uma razão prática que
limita o recurso à greve e que a torna, de facto, uma arma de uso excepcional:
os trabalhadores que fazem greve perdem o salário correspondente, o que,
principalmente em época de crise, não é algo que se aceite levianamente.
O argumento de que a greve dos
professores vai prejudicar os alunos e, por isso, não deve ser feita, é tão
pueril como dizer que as greves de transportes não devem ser feitas porque
prejudicam os passageiros e as greves de recolha do lixo não devem ser feitas
porque prejudicam os moradores. As greves prejudicam sempre alguém.
É evidente que os grevistas têm
de pesar os prejuízos que causam em relação às causas que defendem e aos
benefícios que esperam. Não é aceitável que uma greve de trabalhadores da saúde
se salde por uma única morte que seja. Mas considera-se que um certo grau de
desconforto momentâneo da população é um preço aceitável a pagar pelo direito a
defender os nossos direitos. E são "os nossos direitos" porque a
greve não é algo que apenas os outros façam. A greve é uma ferramenta que todos
temos na mão.
É evidente que podemos ter opiniões
diferentes sobre a justeza de uma dada greve, mas são raros os que acham que os
professores não têm, no caso vertente, razão suficiente de protesto, perante a
tentativa de industrializar uma escola pública de baixo nível para os pobres e
proletarizar os professores. O prejuízo dos alunos? Essa é a arma da greve.
Nenhum professor deseja ou aceita que um aluno seja seriamente prejudicado pela
greve - além do incómodo decorrente de, eventualmente, repetir o exame - mas
essa é uma preocupação que, agora, o Governo deve assumir. Havendo greve, tem
de ser dada possibilidade aos alunos de realizar exames noutras ocasiões, de
forma a não os prejudicar. Vai ser uma grande confusão? Provavelmente. Mas essa
é, mais uma vez, a arma da greve. Essa é a pressão da greve e, se não
aceitarmos que uma greve possa dar origem a estas formas de pressão, isso
significa que não aceitamos o direito à greve. Nem o dos outros, nem o nosso.
Significa que, sejam quais forem as condições que nos imponham no nosso
trabalho, achamos que não devemos ter o direito de parar de trabalhar.
É evidente que existem nas greves
em geral, e também nesta, coisas irritantes. Além de alguma imaginação nos
protestos, teria gostado de ver no centro das intervenções dos professores a
defesa da escola pública, a defesa da qualidade do ensino e a defesa dos
direitos dos jovens (incluindo daqueles que deviam ser alunos e não o são) em
vez de quase exclusivamente os direitos dos professores - por muito que estes
sejam de prezar. Não é apenas um erro retórico: é um erro político de
consequências sérias. Seria importante aproveitar este momento para explicar de
que forma todas as medidas deste Governo põem em causa a escola pública
inclusiva e de qualidade que tem sido construída nas últimas décadas. Mas os sindicatos
dos professores estão demasiado centrados numa defesa estreita dos direitos dos
seus associados. É um erro político porque facilita à direita o uso da retórica
dos "privilégios" e da "resistência à mudança". É um erro
político quando a greve e o "prejuízo dos alunos" tornam fácil a
acusação de "egoísmo" àqueles que são o principal esteio da escola
pública e os principais autores dos seus êxitos - que existem e seria bom
lembrar nestes dias de greve.
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