As primeiras vozes que se
levantaram, contra a austeridade que nos está a ser imposta pelos mandatários
internos da troika estrangeira, foram apelidadas de “radicais” e “extremistas”.
Infelizmente para todos nós, elas estavam cheias de razão e o seu raciocínio
completamente correto. Com o passar do tempo e à medida ia aumentando o
descalabro que nos está a atingir em todos os sentidos, mais e mais gente,
insuspeita de qualquer tendência esquerdista, vem tecendo as mais agrestes críticas
aos desvarios do Governo cuja máxima preocupação é a defesa dos interesses da
banca e do capital financeiro. Nicolau Santos
é uma dessas vozes cuja opinião nos chega, tanto através da rádio como por meio
do que escreve. Um dos seus textos desta semana, no caderno Economia do
Expresso, é um alerta de grande qualidade e de leitura simples como poderemos
verificar pela sua transcrição.
Está a acontecer. Já se
percebeu?
Está
a acontecer. Aquilo que nem nos passava pela cabeça que pudesse acontecer está
mesmo a acontecer. Está a acontecer cada vez mais e com mais regularidade as
farmácias não terem os medicamentos de que precisamos. Está a acontecer que nos
hospitais há racionamento de fármacos e uma utilização cada vez mais limitada
de equipamentos. Está a acontecer que muitos produtos que comprávamos nos
supermercados desapareceram e já não se encontram em nenhuma prateleira. Está a
acontecer que a reparação do carro, que necessita de um farol ou de uma peça,
tem agora de esperar uma ou duas semanas porque o material tem de ser importado
do exterior. Está a acontecer que as estradas e as ruas abrem buracos com
regularidade, que ou ficam assim durante longos meses ou são reparados de forma
atamancada, voltando rapidamente a reabrir. Está a acontecer que a iluminação pública
é mais reduzida, que mais e mais lojas de centros comerciais são entaipadas e
desaparecem misteriosamente. Está a acontecer que nas livrarias há menos
títulos novos e que as lojas de música se volatilizam completamente. Está a
acontecer que nos bares e restaurantes há agora vagas com fartura, que os
cinemas funcionam a meio gás, que os teatros vivem no terror da falta de
público. Está tudo isto a acontecer a nós, como o sapo colocado em água fria
que vai aquecendo lentamente até ferver, não vemos o perigo, vamos aceitando
resignados este lento mas inexorável definhar da nossa vida coletiva e do
Estado social, com uma infinita tristeza e uma funda perturbação.
Está
a acontecer e não poderia ser de outro modo. Está a acontecer porque esta política
cega de austeridade está a liquidar a classe média, conduzindo-a a uma crescente
pauperização, de onde não regressará durante décadas. Está a acontecer porque,
nos últimos quase 40 anos, foi eta classe média que alimentou cinemas, teatros,
espetáculos, restaurantes, comércio, serviços de saúde, tudo o que verdadeiramente
mudou o país e aquilo que verdadeiramente traduz os hábitos de consumo numa
sociedade moderna. Foi na classe média – de professores, médicos, funcionários
públicos, economistas, pequenos e médios empresários, jornalistas, artistas,
músicos, dançarinos, advogados, polícias, etc. –, que a austeridade cravou o
seu mais afiado e longo punhal. E com a morte da classe média morre também a
economia e o próprio país.
E
morre porque era esta classe média que mais consumia – e que mais estimulava –
os produtos culturais nacionais, da cultura à dança, dos jornais às revistas,
da música a outro tipo de espetáculos e de manifestações culturais. É por isso
que a cultura está a morrer neste país, juntamente com a economia. E se a
economia pode ainda recuperar lentamente, já a cultura que desaparece não volta
mais. Um país sem economia é um sítio. Um país sem cultura não existe.
Durante
a II Guerra Mundial, quando o esforço militar consumia todos os recursos das
ilhas britânicas, foi sugerido ao primeiro-ministro Winston Churchill que
cortasse nas verbas da cultura. O homem que conduziu a Inglaterra à vitória
sobre a Alemanha recusou perentoriamente. “Se cortamos na cultura estamos a
fazer esta guerra para quê? Mutatis mutandis, a mesma pergunta poderíamos fazer hoje:
se retiramos todas as verbas para a cultura, estamos a fazer este ajustamento
em nome de quê? Mas esta, claro, é uma questão que nunca se colocará às
brilhantes cabeças que nos governam.
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