De tempos a tempos
encontram-se, nos meios de comunicação social, referências ao número de dias
que os cidadãos precisam trabalhar para satisfazerem as suas obrigações fiscais.
No Público online de hoje pode ler-se que “os portugueses começam esta terça-feira a receber o seu verdadeiro salário líquido, depois de cinco meses a trabalhar para pagar impostos” e chama-se a este dia o “Dia da Libertação dos
Impostos”. Acontece que esta notícia tem por base o estudo levado a cabo por um
think tank (grupo de reflexão) designado por New Direction, Fundação para a
Reforma Europeia, conotado com a direita ultraliberal e cuja patrona é, nem
mais nem menos que a baronesa Thatcher. A partir daqui, ficamos com a certeza
de que o estudo tem muito pouco de científico e muito de ideológico. A sua
isenção é, portanto, igual a zero e, como tal, deve ser lido. É também patente
o ódio que exprime pelo Estado e pelo funcionalismo público mas as suas
contradições não resistem a uma análise cuidada como a que é feita pelo
jornalista José Vitor Malheiros na edição impressa do Público, e cuja leitura recomendamos vivamente.
O papel do Estado: a mentira
muito repetida
"Os
trabalhadores portugueses vão precisar de trabalhar este ano até ao dia 4 de
Junho só para pagar impostos". A notícia invadiu há uns dias todos os
meios de comunicação social portugueses, das rádios às televisões e dos jornais
aos sites da Internet, com honras de primetime e de manchete. A redacção quase
idêntica de todos os textos revelava a eficácia da operação de comunicação que
difundiu as conclusões de um estudo, The Tax Burden of Typical Workers in the
EU 27" (O Fardo Fiscal dos Trabalhadores Médios na Europa a 27), realizado
pela organização New Direction - Fundação para a Reforma Europeia. As notícias
não identificavam a orientação ideológica do think tank, mas o seu site
identifica-o como uma organização "euro-realista" e "defensora
do mercado livre", criada em 2010 em Bruxelas e filiada na Aliança dos
Conservadores e Reformistas Europeus, um grupo da direita ultraliberal. Mais
revelador: a patrona do grupo é a baronesa Thatcher e a capa do estudo é
ocupada por uma fotografia de uma grilheta, com a sua corrente e a respectiva
bola de ferro. O símbolo dos impostos, claro.
O
teor e o tom das notícias é idêntico: o estudo é apresentado como um trabalho
científico; a organização que o produziu como "um think tank" ou "um grupo de reflexão", a imagem
da objectividade e do rigor; as suas conclusões como objectivas. A inflexão dos
pivots da televisão é sempre
grave: os portugueses tiveram de trabalhar em 2011 até 29 de Maio para pagar os
seus impostos, em 2012 até 3 de Junho e este ano terão de trabalhar mais um dia
para chegar ao "Dia da Libertação de Impostos" - a expressão usada no
relatório e que as notícias repetem. Só depois desse dia começam a trabalhar
"para si".
Para
quem estarão a trabalhar antes disso, se não é para si? O estudo explica: para
o monstro do Estado, que lhes come os rendimentos, para quem havia de ser? Para
funcionários públicos parasitas que não fazem nada e que é bem feito que sejam
depedidos aos milhares. Para aquele buraco sem fundo, que tudo destrói, tudo
queima, que nada produz, sem o qual a vida dos trabalhadores seria um paraíso.
Onde é gasto esse dinheiro pelo Estado? Será que o Estado, com esse dinheiro,
produz bens e serviços que são disponibilizados aos cidadãos? Será que o
Estado, com esse dinheiro, paga centros de saúde, hospitais, escolas,
universidades, laboratórios de investigação, vacinas, bibliotecas públicas,
estradas e esgotos, tribunais e polícia? As notícias não dizem. Como não dizem
que um alto nível de impostos pode significar uma elevada qualidade dos
serviços fornecidos pelo Estado ou um Estado mal gerido. O que se consegue
perceber pelas notícias é que cada vez se paga mais para o Estado e que isso é
mau. O que as notícias não explicam é por que razão os países onde o nível de
vida é mais elevado e onde há maior bem-estar, a Finlândia, a Holanda, a
Alemanha, ainda se paga muito mais impostos. O que importa é dizer que em todos
os países se paga de mais. Muito, muito mais do que se devia pagar.
E
porque se paga cada vez mais ao Estado em Portugal? Será que isso se deve ao
facto de o Estado oferecer aos seus cidadãos cada vez mais e melhores serviços?
Ao facto de os serviços do Estado serem cada vez mais inclusivos e terem uma
cobertura geográfica cada vez mais alargada? Ou ao facto de a política de
austeridade estar a destruir a economia e estar a canalizar para o pagamento de
juros agiotas cada vez mais recursos dos cidadãos? O estudo não diz, as
notícias não dizem. Aliás: austeridade é uma palavra que não aparece no relatório
do think tank. A sugestão é que
o Estado gasta cada vez mais porque é mau.
O
que temos é o pior dos mundos: o Governo começa por roubar os contribuintes
para pagar juros aos seus amigos financeiros e difama em seguida o
Estado-gastador, através de instrumentos como este think tank, acusando-o de malbaratar dinheiro em sistemas de
protecção social de luxo insustentáveis. De uma cajadada, três coelhos:
reduzem-se os trabalhadores à miséria e à submissão, enriquecem-se os amigos
ricos e reúnem-se argumentos para destruir o Estado social, para alienar
património público e para transferir os bons negócios da saúde e da educação
para as empresas privadas.
O
tratamento da notícia é típico das notícias de economia. Explícita ou
implicitamente, o pano de fundo das notícias que os noticiários de televisão e
os artigos de jornal nos fornecem é uma ideologia ultraliberal que considera o
papel do Estado na economia e na sociedade em geral sempre excessivo, que
considera a protecção dos trabalhadores sempre perniciosa e contrária ao
interesse da economia, os impostos pagos ao Estado sempre injustificados, o
mercado desregulado como o maior dos bens, a "flexibilização das relações
de trabalho" como algo cuja bondade está estabelecida cientificamente.
Pouco importa que tudo isso seja cientificamente falso ou eticamente abjecto ou
ambas as coisas.
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