Enquanto por cá se vai discutindo o
orçamento do vale tudo para o desmantelamento do Estado Social, para a defesa
dos interesses dos credores em detrimento da dignidade das pessoas, para o
encobrimento do falhanço das estratégias do Governo e da troika, para o passa
culpas ao Tribunal Constitucional caso se confirme o segundo resgate, o mundo
continua a revelar-nos realidades que ultrapassam a ficção. Vivemos numa
liberdade vigiada que atinge toda a gente, no sentido mais literal do temo –
nem os grandes lideres mundiais escapam. Pior do que poderíamos imaginar, não somos
vigiados apenas por estados mas por empresas privadas. Poder político e poder
económico compartilham toda a espécie de informações sobre cidadãos e empresas
para os poderem manipular e chantagear. Aqui as leis não entram, não tenhamos
quaisquer dúvidas. Como muito bem refere Manuel Loff no texto que a seguir
reproduzimos, “o Big Brother do Orwell, afinal, já não tem o vulto de
Estaline mas de Bush ou de Obama” – veste a capa de democrata para melhor nos
enganar.
Biliões de comunicações
intercetadas, via telefone, correio eletrónico, redes sociais (Facebook,
Twitter,), registo de todas as buscas feitas na Internet. A caixa de Pandora
que o fugitivo Edward Snowden abriu não se fecha: hoje sabemos que a agência
norteamericana NSA espiou - espia! - pelo menos 35 líderes mundiais (até agora
só duas o assumiram: Dilma e Merkel), incluídos os seus mais diretos aliados,
as comunicações de centenas de milhões de pessoas, aliados e inimigos,
europeus, asiáticos, africanos, americanos. Nas palavras de Jean-Jacques
Urvoas, deputado francês responsável pela investigação parlamentar do caso,
"os Estados Unidos não têm aliados, mas apenas alvos ou vassalos" (Le
Monde, 21.10.2013). Uma World Wide Web toda ela ingerida, vigiada, intercetada,
contaminada por estratégias de policialização e militarização.
Do "Big Brother is
watching you" do 1984 de George Orwell, passámos a "o BB ouve o que
dizes, compila dados sobre ti, conhece tudo de ti..." Como bem recorda
Jérémie Zimmermann, "se formos um utilizador-padrão do Google, este sabe
com quem nos comunicamos, quem conhecemos, o que investigamos, pode saber das
nossas preferências sexuais, religião, crenças filosóficas" (in J. Assange
e outros, Cypherpunks: Liberdade e o Futuro da Internet, S.Paulo:
Boitempo, 2013). O Big Brother que Orwell encontrou num Estado obsessivo
e paranóico não tem por que ser sempre o Estado, muito pelo contrário: "a
fronteira entre governo e grupos económicos privados dissolveu-se. (.) A
NSA, que era a maior agência de espionagem do mundo, trabalhava com dez grandes
empresas há dez anos", a quem pedia e vendia dados. "Há dois anos,
com mais de mil" (Julian Assange, Cypherpunks...). Poder político e
poder económico entram na intimidade profissional, cívica, sexual, moral, de
jornalistas e ativistas políticos e sociais, de empresários e sindicalistas, de
cidadãos comuns cujas ações é preciso antever, dirigir, manipular. Bem pode
o diretor da NSA, o general Alexander, papaguear aquilo que puseram Obama a
dizer, candidamente, há um mês: tratar-se-ia de "informação que nós e os
nossos aliados obtivemos conjuntamente para a proteção dos nossos países e em
apoio das nossas operações militares" (El País, 29.10.2013).
Tretas! Escutam-se islamistas tanto quanto se escuta Merkel ou Dilma; tanto se
controla movimentos sociais e partidos políticos, como se faz espionagem
industrial/económica; espia-se dirigentes políticos para prever as suas
decisões ou para chantageá-los. E é provável que a NSA, com grande cinismo,
tenha razão: fazem-no eles como o faz qualquer serviço de informações em todo o
mundo (não soubemos de tantos casos em Portugal?), a coberto de nenhuma
legalidade (tudo isto é proibido pelo Direito Internacional e em praticamente
todas as legislações nacionais) mas invocando razões de segurança, tão
típicas do pós-11 de setembro, deste sinistro início de século, quanto o foram
dos anos 1930... A diferença é que, hoje, Estado e capital dispõem de
instrumentos e de tecnologia com que Goebbels e Hitler jamais sonharam!
Assange, outro protagonista
desta discussão - e que, como Snowden, está a pagar caro o caminho sem regresso
que tomou -, ele próprio produto desta nova era histórica que a Internet está a
abrir, diz que "o mundo não está a deslizar lentamente, mas, pelo contrário,
galopa na direção de uma nova distopia transnacional. Este processo ainda não
foi corretamente percecionado fora da comunidade dos serviços de informação. O
segredo, a complexidade e a escala dele esconde-o. A Internet, o nosso maior
instrumento de emancipação, foi transformada no mais perigoso facilitador de
totalitarismo que vimos até agora. (.) Em poucos anos a civilização global será
uma distopia de vigilância pósmoderna, da qual poderão escapar apenas os mais
bem equipados" para lhe resistirem. "De facto, esse pode ser já o
nosso tempo" (Assange, Cypherpunks...).
Quanto mais
tempo deixaremos passar até repensarmos todas as nossas conceções, hoje
tornadas ingénuas e patéticas, sobre o que é a democracia, que à maioria de nós
se disse ser o que corresponde ao sistema político e social em que vivemos,
sobretudo quando gerido por ocidentais, (quase todos) brancos e mercadófilos,
apesar de ir acumulando razões para perceber que dos seus pilares pouco resta?
70 anos a fazer do elogio da democracia americana a base para o combate ao
totalitarismo (o soviético, o chinês, o cubano), a tudo aquilo que cheirasse a
Revolução, a Estado ou a propriedade socializada, em nome de uma primazia do
indivíduo (vê-se...) - e quando é que os neoliberais e neoconservadores deste
mundo nos explicam como é que o Big Brother do Orwell, afinal, já não
tem o vulto de Estaline mas de Bush ou de Obama?, e não atua em nome de uma
ideologia descrita como coletivista mas sim de um banal securitarismo do
Pentágono e da galáxia de agências e empresas que fazem dos EUA a maior
potência militar e económica do planeta? Que nome tem o sistema que vigora no
país da hipervigilância e dos drones não pilotados, em que se prende e
tortura suspeitos de tudo e de nada sem acusação formada e se os encerra
indefinidamente num território (Guantánamo) onde se não aplica sequer a lei
norteamericana?