sexta-feira, 11 de outubro de 2013

SERES HUMANOS SÃO SERES HUMANOS!



Nunca se vai saber o número exacto de mortos do naufrágio de Lampedusa mas, certamente, não estará longe dos 400 como aqui já referimos. A desumanidade para com os emigrantes africanos que tentam chegar à Europa, à procura de uma vida melhor, não tem perdão. Os que morrem são alvo de lamentos hipócritas de toda a espécie enquanto os que sobreviveram são internados em campos de detenção e tratados como criminosos. Esta atitude da Europa que clama a toda a hora em defesa dos direitos humanos em situações longe das suas fronteiras, finge desconhecer tal conceito aqui mesmo à sua porta. Denunciar esta vergonha é um imperativo de ordem moral, para usarmos apenas o termo mais brando possível.
O texto de Manuel Loff que encontrámos no Público (“Vergonha”) de ontem é mais uma voz a lembrar que seres humanos têm de ser tratados como seres humanos em qualquer parte do mundo. Para que conste!
289 mortos. Fora os que estão no fundo do mar, provavelmente mais de cem. Gente de quem não se ouvirá falar mais, famílias e comunidades que deles nada mais saberão. 155 sobreviveram ao naufrágio de há uma semana. Todos recolhidos por pescadores que desafiaram a lei italiana: por o fazerem, podem ser acusados de "cumplicidade com imigração ilegal". A polícia marítima vigiava sem tomar qualquer iniciativa de salvamento, por forma a não contrair obrigações legais para com um clandestino. Os que se salvaram foram metidos dentro de um sobrelotado centro de acolhimento - que, de facto, é de detenção -, à espera de serem deportados de volta a África. Roma recusa-se a dar seguimento aos pedidos da presidente da Câmara de Lampedusa, a pequena ilha do Canal da Sicília que separa as costas italianas das do Norte de África, para que estes desgraçados sejam transferidos para o continente. Todos os maiores de 14 anos, sem exceção, foram processados ao abrigo da lei italiana (comum a vários outros países europeus: França, Grã-Bretanha, Alemanha, Grécia, ...) que criminaliza a imigração clandestina. O mesmo pode acontecer aos pescadores. Nenhum processo foi aberto contra a polícia marítima por falta de empenho no salvamento.
Centenas de mortos que se juntam a outros 20 mil, contados desde 1990, cujos restos estão no fundo do Mediterrâneo. Gente que tenta chegar às costas europeias, fugindo da miséria, da perseguição, da guerra, ou simplesmente exercendo o seu direito de querer mudar de vida, exatamente como fizeram mais de cem milhões de europeus ao longo dos últimos 150 anos, incluídos milhões de portugueses. Miséria e conflitos dos quais, recorde-se, a Europa, vários países europeus, é co-responsável. Não só por causa da herança de cem anos de colonialismo de ocupação que, a favor dos interesses do colonizador, desestabilizou irreversivelmente sociedades e economias dos colonizados, mas muito mais diretamente em consequência de relações económicas construídas sobre desigualdade radical na distribuição da riqueza produzida, vergonhosa sub-remuneração do trabalho, apropriação de recursos alheios que o capital europeu (e norte-americano, e japonês, e chinês) impõe em cada um dos seus investimentos por esse mundo fora, para os quais não há (nem nunca o capital os aceitaria) qualquer barreira ou muro armado como aqueles que os EUA levantaram na fronteira com o México, ou a UE nas suas fronteiras ao longo do Mediterrâneo, em Ceuta, na Grécia, em todos os aeroportos...
Tinham pago 1000-5000 dólares à cabeça para fazer uma viagem desesperada. Poupanças de vidas inteiras. Vinham da Etiópia, da Eritreia, da Somália, por acaso ex-colónias italianas, mas podiam vir, como vêm, da Síria, do Egito, do Iraque, do Afeganistão. Durão Barroso e Cecilia Malmström, a comissária europeia de Assuntos Internos, atreveram-se a viajar ontem a Lampedusa, "no espírito de apoio e solidaridade europeia". Como se não tivessem responsabilidade alguma. Foram recebidos com gritos dos habitantes da ilha que lhes chamaram "Assassinos!" e lhes pediram que tivessem "Vergonha!" Malmström reconheceu há dois anos que a Europa tinha "perdido uma oportunidade", a da Primavera Árabe, para "mostrar que a UE está pronta a ajudar", mas até hoje, como em bom cinismo se faz, não deu um passo para corrigir uma política de controlo da imigração que tem tudo de letal, na forma como criminaliza a clandestinidade (e, assim, ajuda ao racismo contra imigrantes legais e ciganos), que instrói as polícias marítimas e a agência Frontex para impedir a passagem de barcos de clandestinos antes mesmo de verificarem haver um mínimo de segurança destes ou se empenharem na salvação de náufragos. Tudo é feito para impedir que estes barcos entrem sequer em águas territoriais de um país europeu, dentro das quais deveriam ser assegurados aos imigrantes os direitos mínimos previstos na legislação quanto à solicitação de asilo ou à indagação de motivos legítimos de entrada em território europeu. Quanto se horrorizam os dirigentes europeus, e os do Ocidente em geral, como na Síria, com guerras e ditaduras (quantas vezes armadas por eles próprios), lembrando-se apenas de um presumível direito universal à intervenção militar, mas esquecem-se tão descaradamente do dever de solidariedade, de ajuda! Como diz o papa Francisco, "ocorre-me uma só palavra: vergonha..."
Imigrantes linchados na Grécia por milícias neonazis, com polícias no meio delas; ministro socialista francês (Manuel Valls) que, como com Sarkozy, expulsa ciganos romenos e búlgaros, apesar de serem cidadãos comunitários; extrema-direita racista que entra em governos europeus (Itália, Hungria, Dinamarca, Noruega, Áustria, Holanda, Finlândia) apoiada numa xenofobia nauseabunda, a cheirar a anos 30... Crise, empobrecimento, desigualdade, racismo, insolidariedade: uma previsível e coerente fórmula de fim de democracia.
A presidente da Câmara de Lampedusa dizia a Letta, o PM italiano: "O mar está cheio de mortos. Venha cá ver o horror! Venha contar os mortos comigo!". A Durão Barroso perguntara-lhe, há meses, "de que tamanho tem de ser o cemitério da minha ilha?" Na próxima campanha eleitoral de Barroso, à Presidência da República, por exemplo, não se surpreenda se vir um fotograma dele em Lampedusa, em frente a centenas de caixões. Nessa altura, que pelo menos a memória disto tudo não lhe falte a si. Que não nos falte a todos.

Sem comentários:

Enviar um comentário