Nunca se vai saber o número exacto de
mortos do naufrágio de Lampedusa mas, certamente, não estará longe dos 400 como
aqui já referimos. A desumanidade para com os emigrantes africanos que tentam
chegar à Europa, à procura de uma vida melhor, não tem perdão. Os que morrem
são alvo de lamentos hipócritas de toda a espécie enquanto os que sobreviveram
são internados em campos de detenção e tratados como criminosos. Esta atitude
da Europa que clama a toda a hora em defesa dos direitos humanos em situações longe
das suas fronteiras, finge desconhecer tal conceito aqui mesmo à sua porta. Denunciar
esta vergonha é um imperativo de ordem moral, para usarmos apenas o termo mais
brando possível.
O texto de Manuel Loff que encontrámos no Público (“Vergonha”) de ontem é mais
uma voz a lembrar que seres humanos têm de ser tratados como seres humanos em
qualquer parte do mundo. Para que conste!
289 mortos. Fora os que estão no fundo do mar,
provavelmente mais de cem. Gente de quem não se ouvirá falar mais, famílias e
comunidades que deles nada mais saberão. 155 sobreviveram ao naufrágio de há
uma semana. Todos recolhidos por pescadores que desafiaram a lei italiana: por
o fazerem, podem ser acusados de "cumplicidade com imigração ilegal".
A polícia marítima vigiava sem tomar qualquer iniciativa de salvamento, por
forma a não contrair obrigações legais para com um clandestino. Os que se
salvaram foram metidos dentro de um sobrelotado centro de acolhimento - que, de
facto, é de detenção -, à espera de serem deportados de volta a África. Roma
recusa-se a dar seguimento aos pedidos da presidente da Câmara de Lampedusa, a
pequena ilha do Canal da Sicília que separa as costas italianas das do Norte de
África, para que estes desgraçados sejam transferidos para o continente. Todos
os maiores de 14 anos, sem exceção, foram processados ao abrigo da lei italiana
(comum a vários outros países europeus: França, Grã-Bretanha, Alemanha, Grécia,
...) que criminaliza a imigração clandestina. O mesmo pode acontecer aos
pescadores. Nenhum processo foi aberto contra a polícia marítima por falta de
empenho no salvamento.
Centenas
de mortos que se juntam a outros 20 mil, contados desde 1990, cujos restos
estão no fundo do Mediterrâneo. Gente que tenta chegar às costas europeias,
fugindo da miséria, da perseguição, da guerra, ou simplesmente exercendo o seu
direito de querer mudar de vida, exatamente como fizeram mais de cem milhões de
europeus ao longo dos últimos 150 anos, incluídos milhões de portugueses.
Miséria e conflitos dos quais, recorde-se, a Europa, vários países europeus, é
co-responsável. Não só por causa da herança de cem anos de colonialismo de ocupação
que, a favor dos interesses do colonizador, desestabilizou irreversivelmente
sociedades e economias dos colonizados, mas muito mais diretamente em
consequência de relações económicas construídas sobre desigualdade radical na
distribuição da riqueza produzida, vergonhosa sub-remuneração do trabalho,
apropriação de recursos alheios que o capital europeu (e norte-americano, e
japonês, e chinês) impõe em cada um dos seus investimentos por esse mundo fora,
para os quais não há (nem nunca o capital os aceitaria) qualquer barreira ou
muro armado como aqueles que os EUA levantaram na fronteira com o México, ou a
UE nas suas fronteiras ao longo do Mediterrâneo, em Ceuta, na Grécia, em todos
os aeroportos...
Tinham
pago 1000-5000 dólares à cabeça para fazer uma viagem desesperada. Poupanças de
vidas inteiras. Vinham da Etiópia, da Eritreia, da Somália, por acaso
ex-colónias italianas, mas podiam vir, como vêm, da Síria, do Egito, do Iraque,
do Afeganistão. Durão Barroso e Cecilia Malmström, a comissária europeia de
Assuntos Internos, atreveram-se a viajar ontem a Lampedusa, "no espírito
de apoio e solidaridade europeia". Como se não tivessem responsabilidade
alguma. Foram recebidos com gritos dos habitantes da ilha que lhes chamaram
"Assassinos!" e lhes pediram que tivessem "Vergonha!"
Malmström reconheceu há dois anos que a Europa tinha "perdido uma
oportunidade", a da Primavera Árabe, para "mostrar que a UE está
pronta a ajudar", mas até hoje, como em bom cinismo se faz, não deu um
passo para corrigir uma política de controlo da imigração que tem tudo de
letal, na forma como criminaliza a clandestinidade (e, assim, ajuda ao racismo
contra imigrantes legais e ciganos), que instrói as polícias marítimas e a
agência Frontex para impedir a passagem de barcos de clandestinos antes mesmo
de verificarem haver um mínimo de segurança destes ou se empenharem na salvação
de náufragos. Tudo é feito para impedir que estes barcos entrem sequer em águas
territoriais de um país europeu, dentro das quais deveriam ser assegurados aos
imigrantes os direitos mínimos previstos na legislação quanto à solicitação de
asilo ou à indagação de motivos legítimos de entrada em território europeu.
Quanto se horrorizam os dirigentes europeus, e os do Ocidente em geral, como na
Síria, com guerras e ditaduras (quantas vezes armadas por eles próprios),
lembrando-se apenas de um presumível direito universal à intervenção militar,
mas esquecem-se tão descaradamente do dever de solidariedade, de ajuda! Como
diz o papa Francisco, "ocorre-me uma só palavra: vergonha..."
Imigrantes
linchados na Grécia por milícias neonazis, com polícias no meio delas; ministro
socialista francês (Manuel Valls) que, como com Sarkozy, expulsa ciganos
romenos e búlgaros, apesar de serem cidadãos comunitários; extrema-direita
racista que entra em governos europeus (Itália, Hungria, Dinamarca, Noruega,
Áustria, Holanda, Finlândia) apoiada numa xenofobia nauseabunda, a cheirar a
anos 30... Crise, empobrecimento, desigualdade, racismo, insolidariedade: uma
previsível e coerente fórmula de fim de democracia.
A
presidente da Câmara de Lampedusa dizia a Letta, o PM italiano: "O mar
está cheio de mortos. Venha cá ver o horror! Venha contar os mortos
comigo!". A Durão Barroso perguntara-lhe, há meses, "de que tamanho
tem de ser o cemitério da minha ilha?" Na próxima campanha eleitoral de
Barroso, à Presidência da República, por exemplo, não se surpreenda se vir um
fotograma dele em Lampedusa, em frente a centenas de caixões. Nessa altura, que
pelo menos a memória disto tudo não lhe falte a si. Que não nos falte a todos.
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