terça-feira, 1 de outubro de 2013

POLÍTICA MA NON TROPPO


José Vitor Malheiros brinda-nos hoje no Público, com mais uma excelente análise da actualidade (título acima), desta vez dedicada às autárquicas do passado domingo. Dá gosto lê-la porque corresponde à percepção de muitos de nós, só que exposta de uma forma clara, simples e objectiva. Retenhamos a pergunta que ele deixa na última nota, realmente muito pertinente e sem explicação à vista: “o PSD obteve 1,4 milhões de votos. Perdeu a nível nacional, mas houve 1,4 milhões de pessoas que não quiseram ser desagradáveis para Passos Coelho. Como é que há tanta gente que não percebe que não se deve deixar o lixo acumular-se desta forma nas ruas, sob pena de dar origem a um sério problema de saúde pública?” 

Primeira nota: uma taxa de abstenção recorde em eleições autárquicas. Mais de 47 por cento dos eleitores decidiram ficar em casa.
Nestas eleições. Que eram autárquicas, que são aquelas eleições de proximidade, onde toda a gente percebe em que é que está a votar, onde toda a gente sabe o que quer mudar no seu concelho e na sua freguesia, onde toda a gente tem uma opinião sobre o que fizeram os que estiveram lá até hoje, onde muita gente até conhece os candidatos pessoalmente, onde há interesses pessoais concretos que estão em jogo, onde até havia independentes para satisfazer o gosto dos que "estão fartos dos partidos" e/ou dos que querem "dar uma lição aos partidos".
Mais de 47 por cento de abstenção nestas eleições. Que eram as primeiras eleições depois da austeridade "custe o que custar", desde que a troika começou a governar Portugal, desde que o Governo colaboracionista de Passos Coelho e Paulo Portas tomou posse, desde que o Governo começou a pôr em prática o seu programa contra o povo. As primeiras eleições onde era possível exprimir o seu sentimento de desagrado, de repúdio, de indignação, com menos incómodo e com mais eficácia do que marchando numa manifestação.
Mas 47 pessoas em cada cem (o número pode ser de facto 38, devido aos eleitores-fantasma que por razões misteriosas continuam a persistir nos cadernos eleitorais, mas é o único que permite comparações com as eleições precedentes) preferiram não ir votar. Porquê? Comodismo? Desilusão com a política? Forma infantil de "castigar" os partidos? Não vale a pena dizer que este é um fenómeno universal, que noutras eleições e noutros países a abstenção ainda é mais elevada. A abstenção é o contrário da democracia porque significa abdicar de um direito inalienável e delegar em outros (quaisquer outros) o nosso poder soberano. A abstenção é um ácido que corrói a democracia e é preciso começar a combatê-la de forma eficaz.
Segunda nota: nunca houve tantos votos brancos e nulos numas eleições autárquicas. Um total de 6,82%. Mais votos destes que em todos os independentes. Duas vezes mais do que no CDS-PP. Votos de pessoas que se deram ao incómodo de ir votar, mas para dizer "não" a todos os candidatos. Um real voto de protesto, ao contrário da abstenção, impossível de caracterizar. Cidadãos que querem uma coisa outra da política e que estão por ali, à espera.
Terceira nota: o PS ganhou as eleições autárquicas a nível nacional. Em votos, em câmaras, em cidades importantes, em Lisboa, em Associação Nacional de Municípios. Mas teve 1.800.000 votos. E nas eleições de 2009, que perdeu, teve mais de dois milhões. A maré cor-de-rosa deve ser lida com prudência. Nas eleições só conta a força relativa dos partidos? Ou conta também a força absoluta? De facto, o PS perdeu em relação a 2009. Perdeu menos votantes do que o PSD, que teve uma sangria, mas perdeu capacidade de mobilização dos seus eleitores. O PSD teve uma derrota mas o PS não se pode vangloriar da vitória. Passos Coelho perdeu mas Seguro não convenceu. António Costa sim. Reforçou a sua maioria, apesar de uma pequena redução no número de votantes. Se há uma leitura nacional possível e uma esperança no combate ao Governo, chama-se António Costa.
Quarta nota: o reforço do PCP/CDU, que passa de 28 para 34 câmaras, que vê a sua votação absoluta subir de forma significativa (apesar da abstenção, apesar dos nulos e brancos) e cuja morte parece ter sido muito exagerada.
Quinta nota: o quase desaparecimento autárquico do Bloco, cuja frágil implantação nacional não permite que ele se torne imune ao voto útil no PS e no PCP.
Sexta nota: a vitória por procuração de um criminoso condenado por fraude fiscal e branqueamento de capitais. Isaltino atrás das grades consegue melhor que todos os outros partidos. E, curiosamente, no concelho do país cuja população tem os mais elevados níveis de instrução. Como ler este resultado? Os engenheiros informáticos não se importam que o seu autarca os roube desde que mantenha aparada a relva do jardim municipal?
Sétima nota: a CNE considera que a sua interpretação restritiva da lei (chamada "restritiva" por ter dedicado apenas uma pequena percentagem dos neurónios dos seus membros a esta discussão) obteve um resultado equilibrado em termos de cobertura noticiosa da campanha?
Oitava nota: as televisões esqueceram que devem ter, acima de tudo, o interesse dos seus telespectadores como critério de acção? Terá sido esse o critério usado para decidir não cobrir a campanha?
Nona nota: ainda a CNE, a cujo site não consegui aceder durante todo o dia de ontem. Será que a CNE não esperava que no dia a seguir às eleições houvesse muitas pessoas a querer consultar os resultados?
Décima nota: o PSD obteve 1,4 milhões de votos. Perdeu a nível nacional, mas houve 1,4 milhões de pessoas que não quiseram ser desagradáveis para Passos Coelho. Como é que há tanta gente que não percebe que não se deve deixar o lixo acumular-se desta forma nas ruas, sob pena de dar origem a um sério problema de saúde pública? 

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