quinta-feira, 17 de outubro de 2013

CORTAR EM TUDO QUE MEXE


Como já todos percebemos, o Governo especializou-se em comunicar com os portugueses em linguagem orwelliana, ou seja, passou a usar palavras com um significado diferente – oposto – daquele que toda a gente conhece. Como em tudo na vida, nada acontece por acaso, e a intenção deliberada da dupla Passos/Portas é confundir as pessoas, em particular aquelas que recorrem menos a informação diversificada. A ajudar a esta confusão está a quantidade brutal de informação veiculada por toda a comunicação social, em especial a televisiva que, em vez de esclarecer, baralha.

Por muito que se queira esconder a realidade, a verdade é que vem aí um novo pacote de austeridade ainda mais gravoso que o anterior, em especial, para os funcionários públicos e para os reformados. A palavra de ordem é cortar em tudo o que mexe.
Sem outra intenção que não seja contribuir para o esclarecimento dos frequentadores deste blog, aqui deixamos, a propósito, a transcrição de um texto assinado por Rui Tavares no Público de ontem, 16 de Outubro.  
O Governo tinha dito que não vinha aí um novo pacote de austeridade. Uma das curiosidades da apresentação do Orçamento do Estado, ontem, era saber com que inventividade semântica conseguiria o Governo não se desmentir, uma vez que para atingir as metas previstas em austeridade seria necessário fazer cortes de cerca de quatro mil milhões de euros, 20% acima do que antes estava anunciado.
A resposta foi dada ontem pela ministra das Finanças: impossibilitada a redefinição do significado da palavra "austeridade" e evitada a redefinição do significado da palavra "pacote", Maria Luís Albuquerque explicou que a chave estava na palavra "novo". É que, vejam bem, este não é um novo pacote de austeridade, este é "o mesmo" pacote de austeridade. Neste contexto, "novo" deixou de querer dizer "aplicado pela primeira vez" e "o mesmo" passou a querer dizer "algo que já tínhamos anunciado portanto é como se já tivesse acontecido". Um pouco depois, o porta-voz do PSD insistiu que este era "o mesmo" pacote porque as suas medidas já tinham sido anunciadas pelo primeiro-ministro no mês de maio, apesar de algumas das medidas anunciadas não estarem no pacote, e estarem no pacote algumas que não foram anunciadas, este pacote não é novo, é o mesmo, é algo que já foi, apesar de ainda ir acontecer.
Basta. Basta destes pantomineiros orçamentais.
Este orçamento, como se viu, corta em tudo o que mexe.
Tudo? Não. Há um irredutível setor que não só resiste à austeridade, como tem uma folga. É essa folga o corte no IRC. O Governo decidiu que, no meio de mortos e feridos, as empresas merecem uma descida de impostos.
Esta descida dos impostos das empresas, noutro momento, poderia ser uma normal decisão de política fiscal. Feita agora, trata-se de uma injustiça, um erro e uma perversidade.
Uma injustiça, porque com o agravamento dos níveis de austeridade para o cidadão comum, direta e indiretamente (através dos cortes no Estado), a descida de impostos para as empresas se resume a tirar a Pedro para dar a Paulo, sendo que Paulo inclui algumas das grandes empresas que mudaram a sua sede fiscal para países onde o IRC é ainda mais baixo, chegando a níveis a que a descida proposta não chega. Nestes casos, está-se mesmo a beneficiar o prevaricador sem qualquer esperança de que ele se emende.
Um erro porque a descida no IRC não vai induzir crescimento económico. É que entretanto - lembram-se? - os salários continuam a ser cortados. Os trabalhadores e as famílias diminuirão ainda mais o consumo. A descida no IRC não justificará contratar mais trabalhadores num momento em que ninguém compra. Havendo folga, a descida deveria ser no IRS: uma folga para as pessoas, e não para as empresas, permitiria às famílias pagar dívidas, poupar, ou consumir. A economia agradeceria.
E é por isso que estamos perante uma perversidade. Ao descer o IRS [faz sentido que aqui seja IRC], o Governo sugere que afinal há folga, no momento em que corta em tudo o resto. Perde assim o argumento mais forte perante o Tribunal Constitucional (de que não há mais onde cortar), e isto já não pode ser por incompetência, mas simplesmente pela vontade de fazer do TC uma força de bloqueio. O cerco continua.

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