quinta-feira, 31 de outubro de 2013

BIG BROTHER COM CAPA DE DEMOCRATA



Enquanto por cá se vai discutindo o orçamento do vale tudo para o desmantelamento do Estado Social, para a defesa dos interesses dos credores em detrimento da dignidade das pessoas, para o encobrimento do falhanço das estratégias do Governo e da troika, para o passa culpas ao Tribunal Constitucional caso se confirme o segundo resgate, o mundo continua a revelar-nos realidades que ultrapassam a ficção. Vivemos numa liberdade vigiada que atinge toda a gente, no sentido mais literal do temo – nem os grandes lideres mundiais escapam.  Pior do que poderíamos imaginar, não somos vigiados apenas por estados mas por empresas privadas. Poder político e poder económico compartilham toda a espécie de informações sobre cidadãos e empresas para os poderem manipular e chantagear. Aqui as leis não entram, não tenhamos quaisquer dúvidas. Como muito bem refere Manuel Loff no texto que a seguir reproduzimos, “o Big Brother do Orwell, afinal, já não tem o vulto de Estaline mas de Bush ou de Obama” – veste a capa de democrata para melhor nos enganar.
Biliões de comunicações intercetadas, via telefone, correio eletrónico, redes sociais (Facebook, Twitter,), registo de todas as buscas feitas na Internet. A caixa de Pandora que o fugitivo Edward Snowden abriu não se fecha: hoje sabemos que a agência norteamericana NSA espiou - espia! - pelo menos 35 líderes mundiais (até agora só duas o assumiram: Dilma e Merkel), incluídos os seus mais diretos aliados, as comunicações de centenas de milhões de pessoas, aliados e inimigos, europeus, asiáticos, africanos, americanos. Nas palavras de Jean-Jacques Urvoas, deputado francês responsável pela investigação parlamentar do caso, "os Estados Unidos não têm aliados, mas apenas alvos ou vassalos" (Le Monde, 21.10.2013). Uma World Wide Web toda ela ingerida, vigiada, intercetada, contaminada por estratégias de policialização e militarização.
Do "Big Brother is watching you" do 1984 de George Orwell, passámos a "o BB ouve o que dizes, compila dados sobre ti, conhece tudo de ti..." Como bem recorda Jérémie Zimmermann, "se formos um utilizador-padrão do Google, este sabe com quem nos comunicamos, quem conhecemos, o que investigamos, pode saber das nossas preferências sexuais, religião, crenças filosóficas" (in J. Assange e outros, Cypherpunks: Liberdade e o Futuro da Internet, S.Paulo: Boitempo, 2013). O Big Brother que Orwell encontrou num Estado obsessivo e paranóico não tem por que ser sempre o Estado, muito pelo contrário: "a fronteira entre governo e grupos económicos privados dissolveu-se. (.) A NSA, que era a maior agência de espionagem do mundo, trabalhava com dez grandes empresas há dez anos", a quem pedia e vendia dados. "Há dois anos, com mais de mil" (Julian Assange,  Cypherpunks...). Poder político e poder económico entram na intimidade profissional, cívica, sexual, moral, de jornalistas e ativistas políticos e sociais, de empresários e sindicalistas, de cidadãos comuns cujas ações é preciso antever, dirigir, manipular. Bem pode o diretor da NSA, o general Alexander, papaguear aquilo que puseram Obama a dizer, candidamente, há um mês: tratar-se-ia de "informação que nós e os nossos aliados obtivemos conjuntamente para a proteção dos nossos países e em apoio das nossas operações militares" (El País, 29.10.2013). Tretas! Escutam-se islamistas tanto quanto se escuta Merkel ou Dilma; tanto se controla movimentos sociais e partidos políticos, como se faz espionagem industrial/económica; espia-se dirigentes políticos para prever as suas decisões ou para chantageá-los. E é provável que a NSA, com grande cinismo, tenha razão: fazem-no eles como o faz qualquer serviço de informações em todo o mundo (não soubemos de tantos casos em Portugal?), a coberto de nenhuma legalidade (tudo isto é proibido pelo Direito Internacional e em praticamente todas as legislações nacionais) mas invocando razões de segurança, tão típicas do pós-11 de setembro, deste sinistro início de século, quanto o foram dos anos 1930... A diferença é que, hoje, Estado e capital dispõem de instrumentos e de tecnologia com que Goebbels e Hitler jamais sonharam!
Assange, outro protagonista desta discussão - e que, como Snowden, está a pagar caro o caminho sem regresso que tomou -, ele próprio produto desta nova era histórica que a Internet está a abrir, diz que "o mundo não está a deslizar lentamente, mas, pelo contrário, galopa na direção de uma nova distopia transnacional. Este processo ainda não foi corretamente percecionado fora da comunidade dos serviços de informação. O segredo, a complexidade e a escala dele esconde-o. A Internet, o nosso maior instrumento de emancipação, foi transformada no mais perigoso facilitador de totalitarismo que vimos até agora. (.) Em poucos anos a civilização global será uma distopia de vigilância pósmoderna, da qual poderão escapar apenas os mais bem equipados" para lhe resistirem. "De facto, esse pode ser já o nosso tempo" (Assange, Cypherpunks...).
Quanto mais tempo deixaremos passar até repensarmos todas as nossas conceções, hoje tornadas ingénuas e patéticas, sobre o que é a democracia, que à maioria de nós se disse ser o que corresponde ao sistema político e social em que vivemos, sobretudo quando gerido por ocidentais, (quase todos) brancos e mercadófilos, apesar de ir acumulando razões para perceber que dos seus pilares pouco resta? 70 anos a fazer do elogio da democracia americana a base para o combate ao totalitarismo (o soviético, o chinês, o cubano), a tudo aquilo que cheirasse a Revolução, a Estado ou a propriedade socializada, em nome de uma primazia do indivíduo (vê-se...) - e quando é que os neoliberais e neoconservadores deste mundo nos explicam como é que o Big Brother do Orwell, afinal, já não tem o vulto de Estaline mas de Bush ou de Obama?, e não atua em nome de uma ideologia descrita como coletivista mas sim de um banal securitarismo do Pentágono e da galáxia de agências e empresas que fazem dos EUA a maior potência militar e económica do planeta? Que nome tem o sistema que vigora no país da hipervigilância e dos drones não pilotados, em que se prende e tortura suspeitos de tudo e de nada sem acusação formada e se os encerra indefinidamente num território (Guantánamo) onde se não aplica sequer a lei norteamericana?

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