“Utilizar
o discurso do Governo para fazer notícias não é fazer notícias, mas sim fazer
propaganda” é uma afirmação certeira de José
Vitor Malheiros no texto que assina hoje no Público. Na realidade, temos
vindo a assistir, cada vez mais, à transformação da informação contida na
imprensa falada ou escrita em sessões de propaganda governamental.
Conscientemente ou não, muitos jornalistas são levados a pactuar com o poder servindo
de seus porta-vozes. Não nos estamos a referir apenas ao que se passa
relativamente à actual maioria de direita. Durante o Governo Sócrates o
regabofe era igual. Mas, a verdade, é que as mensagens são passadas tal qual o
poder deseja, através de vozes supostamente independentes. Facilmente se
verifica quão difícil se torna aos partidos mais à esquerda do espectro
político (PCP e BE) fazerem chegar as suas propostas ao cidadão comum. E tudo o
que não passa na comunicação social, em especial na televisiva, é como se não
existisse… Vivemos na sociedade da informação e quem a controla, controla o
poder. Colocar as pessoas certas (jornalistas) em posições chave é fundamental
para este desiderato.
Leia-se,
então, com atenção o excelente texto de Malheiros que tem o mérito de abordar
um tema perfeitamente candente e, muitas vezes, esquecido.
É interessante fazer uma pesquisa. "Arco da
governação": 132.000 resultados no Google. "Arco da
governabilidade": 90.300 resultados. O que quer dizer "arco da
governação"? A expressão foi inventada por Paulo Portas e representa os
três partidos políticos mais à direita no espectro parlamentar: o CDS, o PSD e
o PS. Os três partidos que assinaram o memorando da troika.
Para o CDS a expressão vale ouro.
Num sistema que funciona garantindo a alternância entre PS e PSD, o "arco
da governação" foi a sua maneira de meter o pé na porta e garantir a
entrada na primeira divisão. "Eu também! Eu também sou da governação!"
E é verdade. O CDS tem estado em coligação em vários Governos, ajudando o PSD
ou o PS a garantir a maioria que lhes forneceu apoio parlamentar.
Depois do "arco da
governação" Portas lançou o "arco da governabilidade", esticando
um pouco mais a corda. Se o "arco da governação" podia ser definido
como o conjunto dos partidos que "têm governado" nos últimos anos, o
"arco da governabilidade" é o conjunto dos partidos que "podem
governar", os partidos que podem garantir que o país é governável.
O problema com estas expressões é
que são ambas expressões de propaganda, que têm o objectivo de excluir do
panorama político e mediático as forças mais à esquerda.
Usar a expressão "arco da
governabilidade" para representar a tríade PS-PSD-CDS é equivalente a
proclamar um direito natural destes partidos a governar e a proclamar a
não-naturalidade da participação de outros partidos no Governo. Um Governo com
o PCP? Com o BE? Hmmm... não sei... não fazem parte do "arco da
governação", pois não?
A colagem de epítetos aos
partidos sempre fez parte do debate político, com o intuito de criar divisões
ou forçar alianças, de promover ou atacar esta ou aquela força. O que é novo e
surpreendente é o facto de expressões deste tipo, politicamente marcadas,
criadas para ser usadas no combate político, carregadas de uma intenção de
segregação de uma parte do espectro político, serem usadas por pivots de
telejornais, por jornalistas e comentadores de jornais, por académicos e
responsáveis políticos mesmo quando possuem um dever de neutralidade e mesmo
quando pensam estar a ser equidistantes. A questão é que, por banalizada que a
expressão esteja, ela continua a transmitir os seus valores e a condicionar de
forma subconsciente o comportamento e as atitudes dos cidadãos. Quando um
jornalista refere o "arco da governação", está a manipular os seus
leitores.
O jornalismo está cada vez mais
cheio destes chavões. Expressões curtas, às vezes bem gizadas, que instilam um
insidioso pensamento sectário e disseminam uma determinada visão do mundo.
Uma que nos últimos dias (a
propósito do chamado Guião para a Reforma do Estado) encheu os jornais
foi "a regra de ouro". Quem é que não gosta de uma regra de ouro? Não
é evidente que uma regra de ouro é sempre absolutamente boa e perfeita e nos
orienta no caminho do bem, da verdade e da felicidade? Não é a regra de ouro da
moral ("faz aos outros como queres que te façam a ti") que se
encontra na base da ética de reciprocidade sobre a qual construímos o nosso
direito e as nossas sociedades?
Só que esta "regra de
ouro" que agora emergiu é a "regra de ouro orçamental" e
representa a inscrição de limites à dívida e ao défice na Constituição. Quem
teve a desfaçatez de lhe chamar "regra de ouro"? Os estrategos que
inventaram o tratado orçamental, claro, ou os publicitários ao seu serviço. Mas
isso não evita que, para a maioria dos jornalistas e comentadores, esta "regra
de ouro", altamente discutível para não dizer criminosa, que representa
uma opção política com riscos cada vez mais claros, que serve determinados
interesses e espezinha direitos, seja... a "regra de ouro". Para quê
pensar quando se tem um computador à frente que faz copy-paste? E neste
momento há milhões de portugueses sem perceber por que razão há pessoas que são
contra algo tão bom como tem de ser uma "regra de ouro".
É também assim que os media
nos dizem que o "PS recusa participar em qualquer diálogo com a maioria"
(esquecendo-se de acrescentar "à margem do Parlamento") só porque o
líder parlamentar do PSD usou aquelas mesmíssimas palavras.
Ou dizem que os "pais
aprovam serviços mínimos nos exames" só porque a direcção de uma
associação de pais o disse. Pequenas simplificações que nos convencem de que o
mundo é um sítio diferente daquele que é na realidade.
Os jornalistas devem usar as palavras das suas fontes quando
fazem citações. Mas apenas quando fazem citações. Quando relatam acontecimentos
ou os comentam, têm, por imperativo deontológico, de se distanciar do discurso
das suas fontes porque este é sempre parcial e frequentemente manipulador. A
imposição do léxico da direita no discurso mediático é a maior vitória que
essas forças políticas poderiam almejar. Mas estão a consegui-lo. Utilizar o
discurso do Governo para fazer notícias não é fazer notícias, mas sim fazer
propaganda. Se o jornalista o faz conscientemente, comete uma falha ética
grave. Se não o faz intencionalmente, faltam-lhe competências técnicas básicas
para fazer jornalismo.
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