terça-feira, 12 de novembro de 2013

CONTROLAR A INFORMAÇÃO



“Utilizar o discurso do Governo para fazer notícias não é fazer notícias, mas sim fazer propaganda” é uma afirmação certeira de José Vitor Malheiros no texto que assina hoje no Público. Na realidade, temos vindo a assistir, cada vez mais, à transformação da informação contida na imprensa falada ou escrita em sessões de propaganda governamental. Conscientemente ou não, muitos jornalistas são levados a pactuar com o poder servindo de seus porta-vozes. Não nos estamos a referir apenas ao que se passa relativamente à actual maioria de direita. Durante o Governo Sócrates o regabofe era igual. Mas, a verdade, é que as mensagens são passadas tal qual o poder deseja, através de vozes supostamente independentes. Facilmente se verifica quão difícil se torna aos partidos mais à esquerda do espectro político (PCP e BE) fazerem chegar as suas propostas ao cidadão comum. E tudo o que não passa na comunicação social, em especial na televisiva, é como se não existisse… Vivemos na sociedade da informação e quem a controla, controla o poder. Colocar as pessoas certas (jornalistas) em posições chave é fundamental para este desiderato.
Leia-se, então, com atenção o excelente texto de Malheiros que tem o mérito de abordar um tema perfeitamente candente e, muitas vezes, esquecido.
É interessante fazer uma pesquisa. "Arco da governação": 132.000 resultados no Google. "Arco da governabilidade": 90.300 resultados. O que quer dizer "arco da governação"? A expressão foi inventada por Paulo Portas e representa os três partidos políticos mais à direita no espectro parlamentar: o CDS, o PSD e o PS. Os três partidos que assinaram o memorando da troika.
Para o CDS a expressão vale ouro. Num sistema que funciona garantindo a alternância entre PS e PSD, o "arco da governação" foi a sua maneira de meter o pé na porta e garantir a entrada na primeira divisão. "Eu também! Eu também sou da governação!" E é verdade. O CDS tem estado em coligação em vários Governos, ajudando o PSD ou o PS a garantir a maioria que lhes forneceu apoio parlamentar.
Depois do "arco da governação" Portas lançou o "arco da governabilidade", esticando um pouco mais a corda. Se o "arco da governação" podia ser definido como o conjunto dos partidos que "têm governado" nos últimos anos, o "arco da governabilidade" é o conjunto dos partidos que "podem governar", os partidos que podem garantir que o país é governável.
O problema com estas expressões é que são ambas expressões de propaganda, que têm o objectivo de excluir do panorama político e mediático as forças mais à esquerda.
Usar a expressão "arco da governabilidade" para representar a tríade PS-PSD-CDS é equivalente a proclamar um direito natural destes partidos a governar e a proclamar a não-naturalidade da participação de outros partidos no Governo. Um Governo com o PCP? Com o BE? Hmmm... não sei... não fazem parte do "arco da governação", pois não?
A colagem de epítetos aos partidos sempre fez parte do debate político, com o intuito de criar divisões ou forçar alianças, de promover ou atacar esta ou aquela força. O que é novo e surpreendente é o facto de expressões deste tipo, politicamente marcadas, criadas para ser usadas no combate político, carregadas de uma intenção de segregação de uma parte do espectro político, serem usadas por pivots de telejornais, por jornalistas e comentadores de jornais, por académicos e responsáveis políticos mesmo quando possuem um dever de neutralidade e mesmo quando pensam estar a ser equidistantes. A questão é que, por banalizada que a expressão esteja, ela continua a transmitir os seus valores e a condicionar de forma subconsciente o comportamento e as atitudes dos cidadãos. Quando um jornalista refere o "arco da governação", está a manipular os seus leitores.
O jornalismo está cada vez mais cheio destes chavões. Expressões curtas, às vezes bem gizadas, que instilam um insidioso pensamento sectário e disseminam uma determinada visão do mundo.
Uma que nos últimos dias (a propósito do chamado Guião para a Reforma do Estado) encheu os jornais foi "a regra de ouro". Quem é que não gosta de uma regra de ouro? Não é evidente que uma regra de ouro é sempre absolutamente boa e perfeita e nos orienta no caminho do bem, da verdade e da felicidade? Não é a regra de ouro da moral ("faz aos outros como queres que te façam a ti") que se encontra na base da ética de reciprocidade sobre a qual construímos o nosso direito e as nossas sociedades?
Só que esta "regra de ouro" que agora emergiu é a "regra de ouro orçamental" e representa a inscrição de limites à dívida e ao défice na Constituição. Quem teve a desfaçatez de lhe chamar "regra de ouro"? Os estrategos que inventaram o tratado orçamental, claro, ou os publicitários ao seu serviço. Mas isso não evita que, para a maioria dos jornalistas e comentadores, esta "regra de ouro", altamente discutível para não dizer criminosa, que representa uma opção política com riscos cada vez mais claros, que serve determinados interesses e espezinha direitos, seja... a "regra de ouro". Para quê pensar quando se tem um computador à frente que faz copy-paste? E neste momento há milhões de portugueses sem perceber por que razão há pessoas que são contra algo tão bom como tem de ser uma "regra de ouro".
É também assim que os media nos dizem que o "PS recusa participar em qualquer diálogo com a maioria" (esquecendo-se de acrescentar "à margem do Parlamento") só porque o líder parlamentar do PSD usou aquelas mesmíssimas palavras.
Ou dizem que os "pais aprovam serviços mínimos nos exames" só porque a direcção de uma associação de pais o disse. Pequenas simplificações que nos convencem de que o mundo é um sítio diferente daquele que é na realidade.
Os jornalistas devem usar as palavras das suas fontes quando fazem citações. Mas apenas quando fazem citações. Quando relatam acontecimentos ou os comentam, têm, por imperativo deontológico, de se distanciar do discurso das suas fontes porque este é sempre parcial e frequentemente manipulador. A imposição do léxico da direita no discurso mediático é a maior vitória que essas forças políticas poderiam almejar. Mas estão a consegui-lo. Utilizar o discurso do Governo para fazer notícias não é fazer notícias, mas sim fazer propaganda. Se o jornalista o faz conscientemente, comete uma falha ética grave. Se não o faz intencionalmente, faltam-lhe competências técnicas básicas para fazer jornalismo.

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