Já muita gente tem afirmado com
desassombro que estamos a viver uma mudança de regime que, se não for contida,
rapidamente nos conduzirá a uma nova ditadura, mesmo que não tenha esse nome. O
Prof. Boaventura Sousa Santos falou há tempo de “uma democracia de baixa
intensidade” mas, o abismo para que caminhamos poderá ser muito pior do que
isso.
O exercício da democracia não se pode
resumir a uma participação num acto eleitoral de quatro em quatro anos, aliás,
sem qualquer efeito prático já que, as promessas da maior parte dos eleitos, são
rapidamente esquecidas. As populações vêem sistematicamente defraudadas as suas
expectativas e, pior do que isso, estão a sofrer uma degradação acelerada das
suas condições de vida. Há maior violência do que esta?
Ainda hoje tivemos conhecimento de que
620 trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo vão ser despedidos
na sequência da venda da empresa à Martinfer. Milhares de pessoas vão ser afectadas
por esta ignomínia. A partir de exemplos anteriores está-se mesmo a ver que o
despedimento destes trabalhadores, que ainda têm alguns direitos, vai servir
para que novas contratações se façam baseadas na lei da selva da precariedade e
com reduzidos direitos. E isto não é violência? Pensarão os nossos governantes
que as sucessivas agressões, da mais variada espécie, a que a esmagadora
maioria da população portuguesa vem sendo submetida, não gera uma natural
revolta? A corda já está tão esticada que a única admiração é que ainda não
tenha rebentado.
A leitura do artigo de opinião de Manuel Loff no Público de hoje
acrescenta muitos pontos ao raciocínio que aqui deixámos.
A polémica está aí: aproxima-se
um ciclo de violência social em Portugal? Ou de violência é já feito o nosso
quotidiano desde há, pelo menos, os três anos do protetorado da troika?
Haverá entre nós uma cultura da violência que propicie a sua expressão
sociopolítica nos próximos tempos?
Aquilo
que estamos a viver e o pavoroso processo de degradação da democracia têm pouco
ou nada a ver com tudo quanto foi a nossa história recente, desde que, pelo
menos, a Constituição entrou em vigor. Não é preciso estarmos radicalmente
contra a receita que nos prescrevem (mas a que não se submetem aqueles que
prescrevem) para perceber esta natureza diferente do que nos está a acontecer.
É a própria ministra Maria Luís dos Swaps que apresenta o OE como produto da excecionalidade
em que vivemos.
Já aqui o escrevi várias vezes:
não estamos face a uma simples viragem de política económica, nem a uma mera
reforma do Estado. O que se está a fazer em Portugal é uma mudança de regime!
Ela decorre do austeritarismo que nos impõe este Governo e nos começaram a impor
os três anteriores, escorados, desde 2011, numa troika que
ninguém elegeu e que ninguém submete a controlo democrático. Os vencedores das
últimas quatro eleições não levaram a votos nenhuma destas medidas,
escudando-se, uma vez chegados ao poder, na excecionalidade. Essa é a regra de
qualquer ditadura: em nome do que os governantes definem como o bem comum, toda
a norma se auto-justifica pela sua origem num sistema de decisão que não tem –
aliás: não deve! (cf. Salazar e a pureza da decisão) – que
consultar os dominados, muito menos ratificar qualquer coisa que eles próprios
não saberiam entender. Os súbditos de semelhantes regimes são tratados como
pacientes que não entendem o diagnóstico do que sofrem, muito menos entenderão
a cura! É o que anda por aí a pregar João César das Neves, essa pobre e
lutadora “voz da consciência”, “merecendo insulto e agressão”, que se confronta
com um povo para quem “revelar a realidade é intolerável”. Neves é outro dos intelectuais
orgânicos da direita para quem a democracia em que vivíamos era uma
ilusão, que há que substituir pelo realismo – e um realismo moral:
“Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que só podia acabar numa crise
terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida nos apanhou, inventamos
novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e justificarmos a raiva
contra os cortes inevitáveis.” É isso mesmo: você, que não se chama Oliveira e
Costa, Dias Loureiro ou Alberto João, por exemplo, andou, admita-o!, a viver de
“grandeza a crédito” e quer agora fugir com o rabo à seringa, e “justificar” a
sua “raiva” com “novas ilusões” – por exemplo, renegociar a dívida, querer
saber se é legítima toda ela, querer que a pague quem a contraiu. “E ai de quem
desmascarar essas tolices!”, “esta fantasia, em que todo o aparelho
político-mediático anda apostado desde então”, esta “magna operação de
desinformação”, escreve o profeta da Universidade Católica (DN,
25.11.2013). Neves não é um qualquer ministro (chegará o dia...) a dizer-nos
que é “excecional” o que se nos impõe, que tudo pode até ser reversível quando
nos voltarmos a portar bem. Ele quer convencer-nos da nossa culpa
coletiva: fomos nós e só nós a correr para o precipício!
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