quinta-feira, 28 de novembro de 2013

SOBRE VIOLÊNCIA



Já muita gente tem afirmado com desassombro que estamos a viver uma mudança de regime que, se não for contida, rapidamente nos conduzirá a uma nova ditadura, mesmo que não tenha esse nome. O Prof. Boaventura Sousa Santos falou há tempo de “uma democracia de baixa intensidade” mas, o abismo para que caminhamos poderá ser muito pior do que isso.
O exercício da democracia não se pode resumir a uma participação num acto eleitoral de quatro em quatro anos, aliás, sem qualquer efeito prático já que, as promessas da maior parte dos eleitos, são rapidamente esquecidas. As populações vêem sistematicamente defraudadas as suas expectativas e, pior do que isso, estão a sofrer uma degradação acelerada das suas condições de vida. Há maior violência do que esta?
Ainda hoje tivemos conhecimento de que 620 trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo vão ser despedidos na sequência da venda da empresa à Martinfer. Milhares de pessoas vão ser afectadas por esta ignomínia. A partir de exemplos anteriores está-se mesmo a ver que o despedimento destes trabalhadores, que ainda têm alguns direitos, vai servir para que novas contratações se façam baseadas na lei da selva da precariedade e com reduzidos direitos. E isto não é violência? Pensarão os nossos governantes que as sucessivas agressões, da mais variada espécie, a que a esmagadora maioria da população portuguesa vem sendo submetida, não gera uma natural revolta? A corda já está tão esticada que a única admiração é que ainda não tenha rebentado.
A leitura do artigo de opinião de Manuel Loff no Público de hoje acrescenta muitos pontos ao raciocínio que aqui deixámos.
A polémica está aí: aproxima-se um ciclo de violência social em Portugal? Ou de violência é já feito o nosso quotidiano desde há, pelo menos, os três anos do protetorado da troika? Haverá entre nós uma cultura da violência que propicie a sua expressão sociopolítica nos próximos tempos?
Aquilo que estamos a viver e o pavoroso processo de degradação da democracia têm pouco ou nada a ver com tudo quanto foi a nossa história recente, desde que, pelo menos, a Constituição entrou em vigor. Não é preciso estarmos radicalmente contra a receita que nos prescrevem (mas a que não se submetem aqueles que prescrevem) para perceber esta natureza diferente do que nos está a acontecer. É a própria ministra Maria Luís dos Swaps que apresenta o OE como produto da excecionalidade em que vivemos.
Já aqui o escrevi várias vezes: não estamos face a uma simples viragem de política económica, nem a uma mera reforma do Estado. O que se está a fazer em Portugal é uma mudança de regime! Ela decorre do austeritarismo que nos impõe este Governo e nos começaram a impor os três anteriores, escorados, desde 2011, numa troika que ninguém elegeu e que ninguém submete a controlo democrático. Os vencedores das últimas quatro eleições não levaram a votos nenhuma destas medidas, escudando-se, uma vez chegados ao poder, na excecionalidade. Essa é a regra de qualquer ditadura: em nome do que os governantes definem como o bem comum, toda a norma se auto-justifica pela sua origem num sistema de decisão que não tem – aliás: não deve! (cf. Salazar e a pureza da decisão) – que consultar os dominados, muito menos ratificar qualquer coisa que eles próprios não saberiam entender. Os súbditos de semelhantes regimes são tratados como pacientes que não entendem o diagnóstico do que sofrem, muito menos entenderão a cura! É o que anda por aí a pregar João César das Neves, essa pobre e lutadora “voz da consciência”, “merecendo insulto e agressão”, que se confronta com um povo para quem “revelar a realidade é intolerável”. Neves é outro dos intelectuais orgânicos da direita para quem a democracia em que vivíamos era uma ilusão, que há que substituir pelo realismo – e um realismo moral: “Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que só podia acabar numa crise terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida nos apanhou, inventamos novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e justificarmos a raiva contra os cortes inevitáveis.” É isso mesmo: você, que não se chama Oliveira e Costa, Dias Loureiro ou Alberto João, por exemplo, andou, admita-o!, a viver de “grandeza a crédito” e quer agora fugir com o rabo à seringa, e “justificar” a sua “raiva” com “novas ilusões” – por exemplo, renegociar a dívida, querer saber se é legítima toda ela, querer que a pague quem a contraiu. “E ai de quem desmascarar essas tolices!”, “esta fantasia, em que todo o aparelho político-mediático anda apostado desde então”, esta “magna operação de desinformação”, escreve o profeta da Universidade Católica (DN, 25.11.2013). Neves não é um qualquer ministro (chegará o dia...) a dizer-nos que é “excecional” o que se nos impõe, que tudo pode até ser reversível quando nos voltarmos a portar bem. Ele quer convencer-nos da nossa culpa coletiva: fomos nós e só nós a correr para o precipício!
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