Uma das últimas modas políticas em voga
em Portugal tem a ver com a culpa atribuída aos partidos pela crise que
vivemos. E, então, como resolver a situação? As cabeças mais sumarentas em
termos de soluções para tudo e o seu contrário, logo descobriram a solução nas eleições
primárias. “A salvação de Portugal são as primárias”. Só que, uma análise não
superficial da realização de eleições primárias, nos conduz, sem grande
dificuldade, à conclusão de que o seu resultado seria a formação de um enorme
centrão, quase sem diferenciação ideológica e em que a direita e os seus próximos
– leia-se PS sem qualquer receio de estarmos a ser injustos – beneficiariam
largamente.
Com o tom irónico que caracteriza muitas
das suas intervenções, Francisco Louçã desmonta com mestria e simplicidade a
solução “primárias” num artigo que assina hoje no Público e que a seguir
transcrevemos, conscientes de que se trata de um texto que deveria ser
amplamente divulgado.
Há
poucos animais mais perigosos, num país desesperado, do que os populismos. No
sono da razão, crescem as assombrações: os populismos prometem tudo a todos,
como se não houvesse amanhã. Ora aqui está o seu último investimento: a crise é
culpa dos partidos, é preciso mudar os partidos, devemos forçá-los a ter
primárias para que sejam os eleitores, e não os partidos, a escolher os
candidatos dos partidos. A salvação de Portugal são as primárias.
É
indiscutível que há culpas dos partidos na crise. Os governos que aceitam e
acarinham as medidas da troika são de partidos. Cada pensão que é
roubada tem a assinatura de dois partidos. Cada privatização tem a chancela de
três partidos. Outros partidos ainda não conseguiram a maioria que dispute as
suas alternativas. Os partidos têm culpas. A pergunta legítima, então, é esta:
as primárias vão forçar os partidos a lutar contra a austeridade e a defender
Portugal, os trabalhadores e os pensionistas?
Começo
pelo princípio: já há primárias. No PS, PSD e CDS. O resultado é evidente,
essas primárias não impediram que esses partidos escolhessem os candidatos pró-troika.
Não mudou nada. Mais ainda: aproveitando um vazio legal, as campanhas das
primárias têm contas desconhecidas e ninguém sabe quem financiou viagens,
jantares e comícios. Qualquer empresa o pode ter feito. Não sabemos. Pode até
ter mudado para pior: não sabemos se os candidatos devem alguma coisa a alguém.
Mas
o populismo agitar-se-á indignado: não é nada disso, são maus exemplos,
queremos muito mais, o que é preciso é primárias para o voto de todos os eleitores.
Tudo aberto, todos decidem tudo. Vejamos os méritos deste clamor.
O
primeiro problema desse modelo é que ele viola um direito constitucional. A
Constituição estabelece que os cidadãos que o entendam podem formar um partido
para exprimir o seu ponto de vista. Portanto, têm o direito inalienável de
escolher como funcionam, quem os dirige e quem os representa para se baterem
pelo seu programa. Ninguém lhes pode retirar esse direito. Se os membros de um
partido não podem escolher quem candidatam ao Parlamento ou ao Governo, então
também perderam o direito de decidir que proposta apresentam à sociedade. O TC
nunca aceitaria uma lei neste sentido.
O
segundo problema é a consequência deste modelo: ele esvazia a responsabilidade.
Os partidos deixam de ser espaços de decisão comum sobre o programa comum dos
seus membros, passam a ser cascas de campanhas individuais. Quem tem fortuna,
ou financiadores, pode disputar as primárias abrindo uma sede, colocando outdoors,
contratando funcionários, pagando publicidade numa TV - tudo legal, é mesmo
isso que quer dizer uma primária. Pior ainda, a partir de uma vitória na
primária, o eleito não pode ser escrutinado: pode lembrar-se de propor a pena
de morte, a expulsão dos ciganos, o fim do RSI ou um hipermercado dentro do Templo
de Diana, porque a sua legitimidade é independente ao partido. Deixa de haver
controlo democrático. O partido está lá, mas não conta, e os eleitores só
voltam dentro de quatro anos. A democracia é substituída pelo individualismo
populista.
O
terceiro problema é que, no conjunto, os eleitores têm variadas inclinações,
mas de dominância de direita e de centro. Por isso, se votarem em putativas
diretas no CDS, os eleitores do PSD, matreiros, vão escolher um candidato que
se submeta a Miguel Relvas. Se votarem em diretas no PCP ou no Bloco, os
eleitores fiéis ao PS vão escolher quem se candidate para propor uma estátua ao
PEC4 e a continuidade da austeridade inteligente. Ou seja, os eleitores votam
de acordo com as suas convicções e lá estarão qualquer que seja o regulamento
das primárias: ou são abertas a todos ou são uma farsa. E as convicções dos
eleitores do PSD e PS, que são a grande maioria, não são as de outros partidos.
As
diretas, assim, não são só um fútil concurso de beleza ou a porta aberta a jogos
financeiros clandestinos. São uma campanha para forçar a esquerda a virar ao
centro e à direita. O resultado será sempre um reforço do PS e do PSD, porque
os seus eleitores anularão os que noutros partidos se lhes opõem. Assim, esta
solução pretende um efeito: em vez de forçar os partidos a romper com a
austeridade, quer consagrar o seu domínio e anular as contestações. Se a crise
de Portugal é a política dos partidos da austeridade, então ela agravar-se-ia
com o populismo.
Ao contrário do populismo, que descreve a sociedade como plana e
dormente, à espera de despertar ao som melodioso de um Flautista de Hamelin, os
democratas reconhecem uma democracia com contradições e com disputa. Os
partidos são parte dessa disputa e têm o dever de confrontar projetos,
convergentes nuns casos, antagónicos noutros. Só os seus membros podem decidir
quem melhor os representa. Nenhum financiador, nenhuma agência publicitária,
nenhuma empresa, nenhum outro partido tem o direito de intervir nessa escolha.
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