Rapidamente
percebemos que o país não levou a sério o chamado Guião da Reforma do Estado. O
seu trajecto encaminhou-o em pouco tempo para a galeria do anedotário nacional,
sob todos os pretextos. Basta seguirmos com alguma atenção a blogosfera e, de
uma forma geral, as redes sociais para chegarmos a esta óbvia conclusão. Por outro
lado, a comunicação social “séria” também se enche de comentários demolidores
que vão desde a ridicularização a uma crítica feroz do documento.
Alguém
já afirmou que Passos encomendou este trabalho a Portas para o “entalar”. De qualquer
maneira, a verdade é que o guião foi aprovado em Conselho de Ministros, veiculando
assim todo o Governo. É, quer se queira, quer não, um documento oficial e,
nesse sentido, não devemos estar desprevenidos, depois de uma sonora gargalhada.
Neste sentido vai o artigo de opinião do prof. Santana Castilho no Público de hoje.
O
"guião para a reforma do Estado" é um panfleto de qualidade inferior,
ridiculamente esticado a corpo 16 e duas linhas de espaçamento. Se o
expurgarmos das afirmações óbvias que o inflam, ficam expostas a vacuidade e a
mediocridade da sua substância. Tem a paternidade, longamente publicitada, de
Paulo Portas. Mas é bom lembrar que foi aprovado em Conselho de Ministros e
vincula por isso o Governo.
A
figura janota de Portas na televisão não logrou tapar o seu esqueleto
reciclado, encolhido e sem convicção, esbracejando na política manhosa que
afunda o país. Apesar de tudo isto, este guião não é um documento qualquer,
porque levou nove meses a preparar, amalgamou contributos de ministros e trata
da "reforma" do Estado. Mas já percebemos que ninguém o toma a sério.
Mostra que a última réstia de decoro político se perdeu num emaranhado de
banalidades, de ignorância e reviravoltas, sem lógica nem pertinência, de
lugares-comuns babosos, miríficas contradições e vacuidade confrangedora. No
entanto, manda a profilaxia contra a manipulação e os riscos de contágio que
percamos com ele algum tempo. Por dever de ofício e ditadura de espaço, fico-me
pelas medidas mais emblemáticas, que à Educação respeitam.
Portas
começa por seduzir os professores com a sua "terceira via", que
designa por "escolas independentes". Trata-se, esclarece com
denguice, "de convidar a comunidade dos professores a organizar-se num
projecto de escola específico, de propriedade e gestão dos próprios, mediante a
contratualização com o Estado do serviço prestado e do uso das
instalações", garantindo "à sociedade poder escolher projectos de
escola mais nítidos e diferenciados" (p. 74). Se Portas quer projectos de
escolas diferenciados, não precisa de retirar o Estado do processo e trazer
para cá o que lá fora começa a ser abandonado. Basta modificar as leis
castradoras, que este Governo cinicamente refinou, deixando que a iniciativa de
organização diferenciada cresça dentro da rede pública. Basta devolver
liberdade pedagógica e autonomia intelectual aos professores. Portas quer outra
coisa, que não pode dizer de chofre: quer abrir a rede de estabelecimentos
públicos à gestão privada.
A
segunda proposta de Portas é uma tentativa de branqueamento da promiscuidade,
melhor dizendo, da corrupção, que grassa com a utilização inconstitucional e
reiteradamente ilegal dos dinheiros públicos, para financiar iniciativas
privadas. Anteontem mesmo uma notável reportagem da jornalista Ana Leal, da
TVI, teria consequências, se a decência vigorasse e as instituições
funcionassem, tamanho e tão grave é o escândalo denunciado. Em vez disso,
Portas sugere "aumentar a liberdade de escolha da sociedade em relação à
Educação" dilatando o já escandalosamente dilatado conceito de
"contratos de associação". Com topete de ilusionista, Portas recorda
que estes contratos "foram, inicialmente, concebidos para preencher a
oferta educativa nos territórios em que a oferta pública era escassa" e
proclama que, agora, "com a disseminação dos equipamentos, um novo ciclo
de contratos de associação deve estar potencialmente ligado a critérios de
superação do insucesso escolar", porque, "como é sabido, globalmente,
as escolas com contrato de associação respondem bem nos rankings
educativos" (p. 74 e 75). A "liberdade de escolha" e a
"autonomia das escolas" são metáforas gastas para justificar a
mercantilização do ensino, substituindo a responsabilidade do Estado pelo
interesse de grupos económicos e religiosos. Tudo sem risco, porque a
contratualização prévia e a flexibilização do mercado de trabalho o retiraram
atempadamente. Não fora ainda termos uma Constituição e quem a defenda, não
fora ainda resistirem muitos que dizem não à desvergonha, teríamos Portas e os
seus mercadores a gritarem bingo.
Muitas vezes se acusam
projectos e propostas de serem ideológicos. Mas é natural que sejam
ideológicos. A questão reside naquilo que propõe determinada ideologia. No que
toca à Educação, rejeito qualquer que, usando o dinheiro de todos, pretenda
favorecer apenas alguns; que rejeite como obrigação central do Estado promover
a Educação de todos os portugueses, enquanto veículo de redução de
desigualdades sociais, de autonomização dos cidadãos e primeiro motor de
crescimento económico. Uma coisa é uma visão sectária de uma facção, outra
coisa é uma opção estratégica que sirva a colectividade. A ideia de Portas para
a Educação geraria os fenómenos que outras sociedades, bem menos frágeis que a
nossa, já experimentaram e começam a abandonar, por perniciosos para o bem
comum. Essa é a realidade escondida com as denominadas "escolas
independentes" e com a inconstitucional extensão da natureza dos contratos
de associação.
Sem comentários:
Enviar um comentário