Ultimamente temos vindo a assistir à “oferta” de
empregos sem remuneração. Até há poucos anos, nem nos maiores pesadelos isso
seria possível – uma pessoa ir trabalhar sem nada receber. Pior que a antiga escravatura
já que então, pelo menos, a alimentação estava garantida, para além de um tecto
para proteger das intempéries e garantir a sobrevivência dos “activos”.
O que acontece actualmente nos casos de trabalho
sem remuneração é que, bem vistas as coisas, os trabalhadores pagam para
trabalhar porque, entre outros gastos, têm, por exemplo, os transportes e a alimentação
fora de casa. É uma situação inqualificável em pleno século XXI, num país do 1º
Mundo.
Provavelmente, os casos mais comuns de trabalho não
pago têm a ver com os “estágios não remunerados”, ponto de partida para o
seguinte texto de João Camargo da Associação de Combate à Precariedade,
transcrito do Expresso de ontem, 23/11/2013.
Após enérgica e longa luta por parte dos sindicatos
e movimentos de precários durante anos, os estágios não remunerados foram
finalmente ilegalizados em 2011. No entanto, como outras medidas aprovadas nos
últimos anos, fechou-se a porta e abriu-se a janela, mantendo-se os estágios
curriculares e os estágios de acesso a algumas Ordens.
Qual é o mal dos estágios? Mostram que as pessoas são
“empreendedoras” e “proativas”, permitem ganhar experiência, reconhecimento,
fazer redes de contactos. Mas não há um reverso? O que leva as pessoas a
trabalhar sem receber? A falta de opções.
Num mercado de trabalho com uma pressão causada por
mais de um milhão de pessoas sem emprego e um desemprego oficial de 36,5% entre
os jovens, quais são os efeitos da aceitação de “trabalhar para a experiência”?
Neste momento de crise os jovens são coagidos a contribuir para a redução dos
salários e para o aumento da precariedade e do desemprego, aceitando ser
extorquidos em nome de futuras vantagens que estão para chegar há anos. Quem entra
atualmente no mercado de trabalho recebe em média menos 11% de salário do que
no ano passado. Entre os que mantêm o seu posto de trabalho, 39,4% viram o
salário ser reduzido no último ano, segundo o Boletim de Outono do Banco de
Portugal. Uma guerra contra quem trabalha, que faz com que as pessoas fujam
mais do país do que quando estávamos em guerra.
Mas qual é o mal dos estágios não remunerados? As pessoas
não podiam ganhar experiência, reconhecimento e fazer redes de contactos e,
além disso, receberem um salário pelo trabalho que desempenham? Especialmente quando
os estágios não remunerados são mesmo estágios fora da lei?
A precariedade e o desemprego são o modelo coerente
e constante, imposto nas últimas décadas. Nesse modelo de sociedade, o estágio
é a porta de entrada para jovens que compõe a mescla de desemprego e
precariedade dominante na população ativa. O estágio é a figura de
informalidade laboral e de desresponsabilização das entidades patronais logo à
entrada da vida ativa, um prelúdio para o que virá. E o que virá já aí está:
desemprego sem direitos ou apoios, abandono, uma vida de exclusão que cada vez
mais uniformiza quem trabalha (55,5% de toda a população activa são precários
ou estão desempregados). Quem lucra com isto? Para algum lado irá o produzido,
o pensado, trabalhado, transformado, não se evapora. Engrossa o Coeficiente de
Gini (*) que cada vez mais tende para a desigualdade e deixa cada vez mais
pessoas para trás, na pobreza.
Pode uma sociedade manter-se assim? E se
pensássemos numa espécie de “TSU para os lucros”? E se os movimentos de precários
e sindicatos iniciassem um debate com a sociedade sobre a necessidade do custo
social do desemprego e da precariedade ser paga por quem lucra com esta
realidade? E se os lucros das maiores empresas pagassem o apoio a quem está no
desemprego? E se a violação do nosso direito coletivo ao trabalho fosse paga
por aqueles que fazem dessa violação o seu modelo de negócio? E se criássemos
um milagre a sério para quem precisa?
(*) Trata-se de uma medida de desigualdade desenvolvida
pelo estatístico italiano Corrado Geni, usualmente utilizada para calcular a
desigualdade de distribuição de rendimento.
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