Uma ideia muito divulgada pela direita, em especial quando está no
poder, é que “não faz” política nem tem ideologia. Muitos ainda se lembram de
uma afirmação do tempo de Cavaco segundo a qual no Governo trabalhava-se
enquanto a oposição (naturalmente a esquerda), cá fora, fazia política. Também Salazar
usava o mesmo truque, que é um total absurdo já que qualquer que seja o tipo de
Governo em que país for, nele está sempre subjacente uma base ideológica por
muito que os que a aplicam a queiram esconder.
Percebe-se que, actualmente, esta situação está a ter lugar em
vários países do planeta onde a extrema-direita governa. O caso mais recente e conhecido
é o do Brasil onde supostamente o regime de Bolsonaro quer fazer crer que é
despido de qualquer ideologia. Não é caso único e, pela expansão que está a
ter, leva-nos à conclusão que a nova ideologia é a desideologia, pelo menos no
dizer dos que a implementam. Esta situação é tema do interessante artigo de
opinião que veio à estampa no “Público” de hoje, assinado por Domingos Lopes.
A ideologia que vai ganhando terreno por
todo o mundo tem tanto medo das suas próprias ideias que as esconde,
declarando-se vazia de ideias, assética.
Em suma, para esta desideologia, o que conta é o que cada um possui,
pois todos podem ter o que quiserem, na base da nova doutrina liberal. Só os
fracos, os que se excluem, os incapazes não alcançam o que pretendem.
As ideologias que se preocupam com a
sociedade no seu conjunto são perniciosas. É preciso eliminá-las, tal como vêm
proclamando Trump, Balsonaro, Orbán e outros tantos.
A saúde, a educação, a
justiça têm de obedecer ao primado dos mercados e serem entregues a quem souber
tirar lucro. O Estado é apenas uma grande empresa.
A beneficência dos poderosos, o seu
deixar escorrer do topo da pirâmide para a base são a esmola que invocam,
servindo-se dos Evangelhos.
O Estado mínimo é, por exemplo, no caso
do Brasil, a atribuição aos cidadãos de umas quantas armas para
que se possam defender. O cidadão é inimigo do cidadão, todos contra todos,
ficando o Estado a intervir para proporcionar negócios aos que podem com o seu
poder económico fazer o país andar.
Esta conceção ideológica passa também
pela utilização da televisão para veicular doses cavalares de ingredientes de
anestesia da consciência social, da pertença a uma profissão, a um território e
até a uma identidade.
Para tanto o importante é absorver tudo
que impeça de pensar o futuro em conjunto com os seus concidadãos. O que
interessa é ingerir o que o rodeia, sem compreender a razão dos problemas.
Pela televisão entra tudo: fogos,
desastres, corrupção, futebol, telenovela, noticiários, pesca, caça, touradas,
o que for, sem ser preciso mergulhar no mundo podre circundante. Esse é o mundo
das ideologias. O que conta é a realidade sem filtros, sem ideologias, dizem.
A televisão analisa o caso jurídico e dá
a sua sentença; não perde tempo, como nos tribunais. Os tribunais buscam a
verdade material, a televisão audiências e lucro.
Quando se diz que o “caso” até passou na
televisão está claramente a assumir-se (consciente ou inconscientemente) que o
que não passa na televisão, não existe.
Passa a desgraça das pedreiras de Borba,
dos fogos, os meninos encerrados numa gruta da Tailândia, a queda de um avião e
a explosão que o futebol proporciona.
Pode saber-se o que aconteceu à família
de Ronaldo ou de Messi. Que interessam as desgraças do vizinho ou do
companheiro de trabalho. Isso não releva. São os que têm uma “vidaça” que fazem
inveja a qualquer um. Essas são vidas que passam na televisão.
É esta a ideologia que levou Trump a
desfazer o pacote de saúde que nos EUA permitiam aos cidadãos fazerem seguros
de saúde para acederem aos hospitais. Com Trump só entra no hospital quem
puder. O Estado tem de ajudar os mais fortes, os que sabem dirigir a sociedade,
tal como dirigem as suas companhias.
Paradoxalmente os corifeus da desideologia prosseguem a sua campanha
ideológica. Para que não se pense. Para que se absorva. Para que os cidadãos
não passem de lorpas. Pensar é que nunca.
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