Neste momento, ser aderente do Bloco, negro
e anti-racista constitui para a agenda da extrema-direita matéria suficiente
para montar uma campanha de ódio contra um número significativo de cidadãos
portugueses. Aliás, o ódio é a ideologia comum a todas as correntes que se
reclamam de extrema-direita. Não é novidade para ninguém e até é dos livros. O que
não se entende é a adesão a esta agenda de partidos como o PS e o PCP já que da
parte de PSD e CDS tudo é espectável desde que produza efeitos nas eleições que
se avizinham. É tristemente repugnante como, uns mais às claras e outros de
forma mais envergonhada, acharam por bem não ser criticável a agressão de
alguns elementos da polícia contra cidadãos negros indefesos, num momento em
que não se vislumbrava razão para tal e num bairro onde a única fartura que há
é a miséria. Não menos criticável é que a expressão politicamente incorrecta
que Mamadou Ba usou, “bosta da bófia”, seja interpretada no pior sentido
possível, tendo em atenção que, em tempo oportuno Mamadou explicou claramente o
que quis dizer. De nada lhe valeu porque o teatro já estava montado. O esclarecimento
dele não convinha ser divulgado…
A verdade é que, passada uma semana de
ataques infundados e ameaças ao Bloco e a Mamadou, fica patente a estranha
admiração de pouca opinião publicada vir em sua defesa. O texto seguinte,
assinado por Pedro Guerreiro no “Público” de hoje faz parte dessas louváveis excepções
e, pela sua qualidade e lucidez decidimos deixá-lo aqui, na íntegra.
“Deixem-me ser politicamente
incorrecto”, pedem-nos. E nós deixámos. Outra coisa não temos feito nós nas
últimas décadas, aliás, se não deixá-los ser politicamente incorrectos, se não
conceder-lhes carta branca nas páginas de opinião, no espaço de comentário
televisivo, nas redes sociais ou no escaparate dos livros mais
vendidos. Curiosa “ditadura do politicamente correcto” esta que lá vai
permitindo que os seus opositores se expressem e que façam da sua opinião
carreira, entre avenças dos jornais, entrevistas e debates, e que ajuda a
resgatar vidas políticas, jornalísticas e académicas de outro modo olvidáveis.
Alguém caído de pára-quedas no nosso
país poderia até atrever-se a pensar que o politicamente incorrecto é um
antídoto contra a irrelevância e um atalho fácil para os cliques, os likes
e os comentários. Que o único obstáculo a uma carreira no politicamente
incorrecto parece ser a concorrência, tal é a quantidade de colunistas
politicamente incorrectos em certos jornais e tal é a semelhança entre as suas
reflexões e a opinião do cidadão comum num café ou numa caixa de comentários.
É que de facto não faltam
senhores a dizerem-nos coisas supostamente corajosas, desassombradas e lúcidas.
A explicarem-nos, com doses variáveis de elegância e subtileza, que não há
racismo em Portugal, que eu até tenho amigos negros e que o anti-racista é o
verdadeiro racista. Que as mulheres não são vítimas de discriminação e assédio,
que qualquer dia já não se pode dizer nada a uma miúda. Que uma pessoa LGBT não se pode
queixar, que qualquer dia o heterossexual é que é uma minoria
perseguida. Que isso da pobreza tem muito que se diga, que o problema são os
subsídios, as parabólicas nas barracas e o pequeno-almoço no café. Que, enfim,
se nós conseguimos vingar e ter uma vidinha confortável, então não há desculpas
para quem ficou para trás.
A “ditadura do
politicamente correcto”, frouxa e incompetente, pelos vistos, lá vai permitindo
também que os politicamente incorrectos socorram os seus mártires. Em nome da
liberdade de expressão, até um nazi na televisão é uma espécie protegida. Porque, já
dizia Voltaire (só que nunca o disse), “posso não concordar com o que dizes,
mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo”. Ou como dizia Churchill
(só que também nunca o disse), “os fascistas do futuro chamar-se-ão
antifascistas”.
Aqui chegado, alguém
minimamente atento já terá suspeitado que a teoria da “ditadura do
politicamente correcto” é uma fraude. Mas para quem esteve distraído, a semana
passada encarregou-se de nos fornecer a prova cabal.
A de outro modo generosa
solidariedade dos politicamente incorrectos não é pelos vistos extensível a
Mamadou Ba, dirigente anti-racista português nascido no Senegal. Mamadou
Ba ousou insurgir-se contra actos suspeitos de violência policial contra
negros, que estão a ser investigados como tal pelo Ministério Público e,
imagine-se, atreveu-se a utilizar um vocábulo escatológico para se referir a
elementos violentos e racistas da Polícia de Segurança Pública.
Surpreendentemente, este acto de
incorrecção política foi mal acolhido por muitas vozes que habitualmente se
queixam do policiamento das palavras e da opinião. O PNR, por exemplo, que ao
longo da sua história albergou indivíduos condenados judicialmente por ódio
racial e uma miríade de outros crimes, organizou uma espera a Ba para o ameaçar
e dizer que não podia ter escrito o que escreveu, sobretudo sendo um
estrangeiro “pago por nós”, acusando-o de… ódio racial.
Nuno Melo, eurodeputado do CDS-PP e
cabeça-de-lista às europeias de Maio, achou pertinente dizer que Ba é “um
cidadão senegalês” e omitir que é igualmente um cidadão português,
acrescentando que aos estrangeiros em Portugal só exigimos “uma coisa: que respeitem
as nossas leis”. Nuno Carvalho, vereador do PSD em Setúbal, foi mais longe e
anunciou que iria enviar as declarações de Ba para o Ministério Público para
este “avaliar se existe razão para lhe instaurar um processo judicial”. João
Moura, deputado social-democrata e presidente da distrital de Santarém,
mandou-o “(ba)rdamerda”.
Delito de opinião?
No espaço de uma semana, o português
Mamadou Ba foi então reduzido a mero estrangeiro, como se tal lhe reduzisse o
direito a exprimir-se livremente. Mais do que isso, foi-lhe lembrado que por
mais anos que viva em Portugal, onde trabalha e construiu família, o nome, a
cor e a origem vão sempre impedi-lo de ser português aos olhos de alguns
brancos.
Foi denunciado ao Ministério Público por
delito de opinião. Foi cercado na rua e mandado bardamerda. Nas redes sociais
tem sido insultado, destratado e alvo de boatos antigos e requentados sobre o
seu salário. Por fim, foi ameaçado de morte ao ponto de ter pedido protecção policial.
Passou-se uma semana e foram poucas — mesmo muito poucas, quase nenhumas —
as declarações públicas em defesa da liberdade e da segurança de Mamadou Ba, o
dirigente anti-racista que, paradoxalmente, é um dos maiores bichos papões da
tal “ditadura do politicamente correcto”. Para os politicamente
incorrectos, a liberdade de expressão tem dias e tem cor, só que não é a de
Mamadou Ba.
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