Contra ventos e marés, a descriminalização do
consumo de droga (levada a cabo em Portugal, há cerca de 20 anos) foi, como o
decorrer do tempo está a mostrar, uma decisão política corajosa e de um
comprovado benefício para a sociedade uma vez que todas as medidas até aí
implementadas, que tinham por base a repressão, não resultaram de todo. Desde a
União Europeia aos Estados Unidos, há um reconhecimento unânime do sucesso do “modelo
português” no combate à toxicodependência.
Pretende-se agora dar mais um passo nesta
área com a legalização do consumo recreativo de cannabis e, para esse efeito, o
Parlamento vai discutir uma proposta do Bloco de Esquerda a 17 de Janeiro.
É claro que uma proposta deste tipo faz,
como sempre em situações idênticas, despoletar a reacção das forças mais
obscurantistas da sociedade. Lembremo-nos, por exemplo, do que aconteceu em relação
à descriminalização do aborto que não trouxe qualquer das catástrofes que a direita
anunciava antes pelo contrário, melhorou significativamente a saúde pública e
deixou de mandar para a prisão as mulheres que interrompiam voluntariamente a
gravidez.
O texto seguinte é a transcrição de um artigo
de opinião do médico Bruno Maia que toma posição no “Público” de hoje em relação
à legalização do consumo recreativo de cannabis e critica fortemente aqueles
que, com fraca argumentação se lhe opõem.
Portugal é um país pioneiro e um exemplo
para o resto do mundo. Não ouvimos esta afirmação com muita frequência mas ela
é repetida à escala global quando discutimos a temática “drogas”. A
descriminalização do ano 2000 é um sucesso. Não o é porque há quem
assim o diga. É-o porque a lei de 2000 permitiu implementar uma série de
programas que resultaram na queda abrupta do consumo de heroína e da
mortalidade associada à toxicodependência.
Mas já passaram 20 anos e o mundo avançou na discussão. Hoje,
múltiplas experiências têm demonstrado
que a legalização do consumo da cannabis pode ser benéfica em
termos de saúde pública. Não são necessários dados para chegar a essa
conclusão, basta pensar que onde a droga é proibida, ela distribui-se pelo
mercado negro, não é sujeita a qualquer controlo e é frequentemente adulterada.
Por contraste, nos estados que a legalizaram, a cannabis é sujeita a
controlo de qualidade e é possível estudar padrões de consumo, verificar
efeitos na saúde das comunidades e dirigir programas de prevenção e redução de
riscos devidamente fundamentados.
No entanto, a Associação de
Médicos Católicos decidiu intrometer-se neste debate e fê-lo da pior
maneira: mentindo! Segundo os médicos católicos, a legalização da cannabis “irá seguramente
levar a um aumento do número de pessoas que consomem esta droga”. Isto não
podia estar mais longe da verdade. Várias experiências recentes de legalização
do consumo da cannabis
não aumentaram o seu consumo. E estes são dados publicados e devidamente
verificados. Isso mesmo admite Hall et al. na revista da Sociedade Americana de
Farmacologia Clínica: “Até à data, estas políticas [de legalização] não
aumentaram o consumo da cannabis
ou os danos relacionados com este”; Wilkinson et al. na revista “Annual review
of medicine” alertam para o facto de que as taxas elevadas de consumo de
cannabis em Estados Americanos que legalizaram a substância “já exisitam antes
da legalização”; num estudo comparativo no Estado do Colorado, Brooks-Russell
et al. chegaram à conclusão que não existe qualquer impacto da “introdução de cannabis legalizada para
consumo recreativo, no consumo por adolescentes”.
É curioso que perante o
enorme problema de saúde pública que é o consumo de álcool que temos no nosso
país e que todos os anos mata dezenas de milhar, os médicos católicos achem
legítimo beber vinho tinto na missa de domingo em frente a crianças mas queiram
continuar a proibir uma substância que em Portugal nunca matou ninguém.
Sabemos que esta discussão é sobre
liberdades individuais e politicas de saúde. Sobre liberdade a questão é
simples: porque tenho eu, enquanto adulto, liberdade para consumir álcool,
tabaco e açúcar, compra-los na loja de esquina aqui no bairro, viver num país
em que a sua produção e comércio é regulamentado e não tenho a mesma liberdade
em relação à cannabis? Sobre saúde pública convém olhar para os dados
objetivos das experiências que já existem, para a experiência que já temos e,
sobretudo, não mentir em meios de comunicação social.
A associação de Médicos Católicos mente, por preconceito religioso e
moralismo faccioso. Isso não ajuda debate nenhum. E não esquecemos também que
estas são as mesmas pessoas que em 2007 afirmavam a pés juntos que a
legalização da interrupção voluntária da gravidez ia resultar num aumento do
número de abortos. Não resultou, o número de
abortos diminuiu 15% desde a sua legalização e Portugal tem hoje das
mais baixas taxas europeias de aborto por cada nascimento, por contraste a ter
uma lei que colocava mulheres na prisão e as matava com complicações do aborto
clandestino.
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