Apesar de estarmos perante factos que
ocorreram na semana passada, o cidadão comum não pode deixar de estar ainda
estupefacto com a campanha difamatória contra o Bloco de Esquerda e o dirigente
da associação “SOS Racismo”, Mamadou Ba, devido à divulgação de um vídeo que
continha cenas de agressão, sem motivo aparente por parte da polícia, contra
cidadãos negros, habitantes de um bairro muito pobre da periferia de Lisboa. O vídeo
era acompanhado pela legenda da autoria de Joana Mortágua: “são 4 minutos
de violência policial no bairro da Jamaica. Podem ir começando a pensar em
desculpas mas não há explicação para isto. E o Bloco vai exigir
responsabilidades”. Acrescente-se ainda a reacção emocional de Mamadou perante
os acontecimentos, usando uma expressão vernácula.
Toda a campanha
que está a atravessar as redes sociais faz parte da agenda da extrema-direita
contra o Bloco, mas foi acompanhada por quase todos os partidos parlamentares
com uma verve que só pode ser explicada pela proximidade das eleições. Não se
olha, pois, a meios para atingir fins e esta sujeira irá certamente continuar.
“Vencer a política suja com política
popular, com a limpidez da democracia” é o conselho de Francisco Louçã na interessante
crónica que veio à estampa no “Expresso diário” de hoje.
Almoçava há dias com uma amiga de origem
africana e, como tantas, neta da violação de uma mulher africana por um colono.
Ela é tão portuguesa como eu, aqui nasceu, estudou e vive, é a sua terra, mas
sente-se menos e sabe porquê: já lhe aconteceu um polícia levá-la para a
esquadra por ter pedido um livro de reclamações numa pastelaria, e o mesmo
aconteceu com a mãe porque, numa fila de trânsito em transgressão, o polícia só
a multou a ela, que lhe disse que era estranho, andor para a esquadra. Até a
banalidade magoa, quando a discriminação se baseia no tom de pele. Enquanto me
contava estas histórias, e outras haverá que doem muito mais, e haverá tanta
gente que sofre e não tem defesa, ia pensando em como se terá sentido o
primeiro-ministro, ou os seus familiares, confrontados ao longo da vida com
estes silenciosos muros de condescendência ou de agressividade que fazem o
racismo. Que António Costa lidou sempre com isso de forma superiormente
elegante, nem há qualquer dúvida. Que um dia explodiu e respondeu emocionalmente
a uma sistemática agressão de carácter, também foi o que vimos.
Mamadou Ba respondeu a ataques que são o
constante da sua vida e, por uma vez irritado, usou o que chamou de “vernáculo”
para dizer o que lhe ia na alma. Dedicado desde sempre a um trabalho notável
pelo respeito, Mamadou aprendeu a conviver com todos e a fazer conviver,
opondo-se sempre à discriminação. Como dirigente do SOS Racismo, isso levou-o
tanto a condenar a violência na esquadra de Alfragide como a cooperar
intensamente com a chefia da PSP no desmantelamento de uma ação internacional
de skinheads nos arredores de Lisboa. Cumpriu bem nesses e noutros casos e a
democracia só lhe pode agradecer por isso. Mas, como a resposta de Costa
apontou claramente, há essa fundura cultural de um racismo da catacumba, que só
emerge quando se pode disfarçar e que toma como alvo quem se destaca no combate
pela igualdade – mas que é suficiente para determinar a agenda mediática. E os
episódios do debate Jamaica demonstraram três realidades: como a
extrema-direita se está a organizar, como alguns partidos e a comunicação
social são vulneráveis à sua agenda ou a agravam por razões de oportunidade, e
como a política foge da discussão sobre a vida das pessoas.
Quanto à organização da extrema-direita, basta
constatar como a meticulosa preparação da tecnologia das redes sociais vai
acumulando bolhas de discurso de ódio. Os sites de “apoio ao juiz Carlos
Alexandre”, da “seleção nacional de futebol” e dos “bombeiros”, mais as redes
de “coletes amarelos”, colecionaram listas de contactos que, por exemplo, foram
ativadas com sucesso com o vídeo dos insultos de um candidato do PNR contra
Mamadou Ba. Veremos dentro em pouco se os conflitos entre os vários fuhrer
destes grupos se esbatem para convergirem no voto no que defende a castração e
outras sevícias civilizadoras e dispensa a cruz gamada, pois é só por aí que
pode surgir uma chance eleitoral. Mas está tudo montado.
Se esta extrema-direita é ainda marginal,
mesmo que possa vir a provocar um susto nas europeias, o seu maior sucesso é a
contaminação política. Nem se pode dizer que tenha sido difícil. Os dois
sindicatos próximos do PNR na PSP saíram à liça, um major-general, Raul Luís
Cunha, agora na reserva, apelou “de imediato à expulsão do indivíduo Mamadou Ba”,
o PSD multiplicou-se em vernáculo orgulhoso, o CDS ficou à espreita, sobra-lhe
algum receio da recordação das suas campanhas contra os ciganos, a malta das
redes sociais ardeu, alguns milicianos foram incendiar caixotes do lixo e o que
puderam apanhar. Uma televisão escolheu mesmo reproduzir o vídeo do PNR, deve
ter achado graça. O “Correio da Manhã”, sempre lesto, anunciou em primeira
página que Mamadou, que trabalhou oito anos na Assembleia Municipal de Lisboa
com salário líquido de cerca de 900 euros, tinha ganho uma fortuna. Toda esta
operação foi meticulosamente desmontada aqui no Expresso por Daniel Oliveira, que escreveu um manual sobre estas formas
de manipulação. Entretanto, o cuidado da Direção Nacional da PSP, instaurando
imediatamente um inquérito ao caso Jamaica, ou a posição exigente do
Presidente, ou de Catarina Martins, nada podia parar o ímpeto desse “eu até
tenho amigos pretos, mas é tempo de lhes dar uma lição”.
Tudo se complicou ainda mais quando o PS
decidiu agravar a tensão política, já dias depois do incidente e a frio. Coube
a Carlos César essa tarefa, que aliás tem sempre cumprido voluntariosamente.
César, que em junho passado, perante a agressão de uma jovem negra no Porto e
perante a passividade da polícia, dizia enfaticamente que “é importante que na
sociedade portuguesa não se escondam acontecimentos como estes, que não sejam
mascarados ou trivializados, sendo, antes, devidamente valorizados. É
importante que na sociedade portuguesa se aprofunde o debate sobre o racismo”,
passou a acusar dirigentes do Bloco de “procurar acirrar ânimos, perturbar a
intervenção das forças da ordem”. Repare-se que não critica declarações por
excessivas ou deslocadas, denuncia uma intenção de “perturbar as forças da
ordem”.
A declaração a que se
refere César é a de Joana Mortágua. O seu texto é exatamente este: “São 4
minutos de violência policial no bairro da Jamaica. Podem ir começando a pensar
em desculpas mas não há explicação para isto. E o Bloco vai exigir
responsabilidades”. É isto. O mesmo César que há poucos meses repetia que “é
importante que na sociedade portuguesa não se escondam acontecimentos como
estes, que não sejam mascarados ou trivializados, sendo, antes, devidamente
valorizados”, passou a ser o mascarador. Ora, a gravidade da acusação não
passou despercebida, tratou-se de criminalizar um partido. Foi portanto César
quem municiou o PSD para atacar o primeiro-ministro no debate quinzenal e quem
ajudou Cristas a ir mais longe com a sua insinuação.
A declaração teve ainda outro efeito, este
na comunicação social. O diretor do “Público”, que tinha escrito a 23 de
janeiro um editorial argumentando, com equilíbrio, que “nada explica e ainda
menos justifica a forma desabrida e descontrolada como os agentes começaram a
agredir as pessoas”, e reforçando que “pretender que a denúncia deste tipo de
atitudes é uma forma de esvaziar a autoridade da polícia não passa, por isso, de
pura demagogia”, mudou de posição mal César lançou o seu ataque e passou a
condenar as “declarações irresponsáveis de Joana Mortágua” (recordemos: dizia
ela simplesmente que houve “agressão policial”, o que o mesmo Carvalho
descreveu como a “forma desabrida e descontrolada como os agentes começaram a
agredir as pessoas”).
Mas o que nos dizem todos estes
alinhamentos, ou esta necessidade de alguma comunicação social – mesmo com
exceções notáveis como o Expresso e o DN – conviver com uma estratégia de
tensão? Conhecem a minha resposta. Estamos na época da política suja e o seu
efeito tóxico é amplo. Vai ser assim, o ataque a Mamadou Ba foi um ensaio,
afinal ele é negro, antirracista e, pior, de esquerda.
Resta saber como deve a esquerda
responder. E a escolha do caminho tem dificuldades mas vai ser fundamental. Na
minha opinião, defendendo todas as vítimas dos ataques e erguendo uma
solidariedade democrática mobilizada, só pode concentrar-se no essencial:
garantir segurança na vida das pessoas. O ataque mais forte contra a esquerda
não vai vir do nazi que se proclama racista; vai vir dos partidos da direita
tradicional que vão dizer aos pobres que “não somos racistas” mas que os
ciganos ou os imigrantes estão a ficar com o dinheiro que devia ser para eles
ou a ocupar as listas de espera nos hospitais. Foi assim se que se fez Trump e
Bolsonaro e é assim que resulta. E o PS vai por-se no meio à espera que a
esquerda pareça ser o espelho da extrema-direita. Não basta portanto uma
barreira antifascista, a força que ganhará será a política popular que garanta
a toda a gente a segurança do emprego e do hospital público de qualidade, a
garantia de poder ir na rua sem medo e de ter casa para os filhos.
A
esquerda que estiver à defesa vai perder. A esquerda que estiver ao ataque fará
a agenda que determinará a vida das pessoas, tranquilidade na rua, salário
digno, cuidados para quem precisa. A paz, o pão, habitação, saúde, educação,
lembra-se? Vencer a política suja com política popular, com a limpidez da
democracia.
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