Está à vista de toda a gente que se assiste
em Portugal a uma onda crescente de manifestações de claro teor racista,
impulsionadas pela extrema-direita mas quase apadrinhadas pela direita e
olhadas sem grande preocupação por várias tendências de esquerda. Na semana
passada veio à tona esta evidência que não pode ser menosprezada sob pena de, a
curto/médio prazo, não ser possível conte-la.
Os imigrantes, particularmente os de origem
africana, estão entre os alvos preferenciais do ódio racista sem que nada o
justifique, mas há mais exemplos que não podem ser esquecidos. A luta contra o
ódio àquele que vem de fora do nosso país pode fazer-se de diversas maneiras e
o exemplo está neste artigo de opinião do escritor Nelson Nunes, no “Público”
de hoje, onde evidencia a riqueza que constitui o cruzamento de culturas diferentes
e a necessidade de muitas pessoas mudarem de país para poderem sobreviver.
O momento em que conhecemos alguém que
vai ser importantíssimo na nossa vida devia vir legendado. Do estilo: “Atenção,
manusear com especial cuidado este ser humano”. Só deste modo poderíamos
absorver como esponjas os ensinamentos que essas pessoas trazem aos nossos
cérebros. Uma das últimas vezes em que esse momento me aconteceu foi com o
Matheus. Trabalha comigo diariamente há um ano, mas é muito mais do que um
simples colega de trabalho. Porque traz no sangue a filosofia valiosa de outra
cultura (ajudou-me a ultrapassar os meus ataques de ansiedade com uma frase só:
“O aço é forjado em fogo e porrada”), porque tem uma música nas palavras à
qual estou pouco habituado. Mas, para alguns portugueses, o Matheus tem um
defeito — como tão bem denuncia aquele matreiro “th”: não é português.
O Matheus é brasileiro, mas não é esse o
motivo que me leva a gostar tanto dele, porque ser do Brasil não é uma
qualidade por aí além, do mesmo modo que ser português também não é grande
coisa enquanto cartão de visita. Dá-se o caso de se ter nascido, sem pedir, num
espaço de terra circunscrito a uma fronteira que uns senhores inventaram e
rabiscaram num pedaço de papel há muito tempo. Nada mais do que isso. Mas a
verdade é esta: não fosse a imigração e eu não teria um irmão de outros pais e
de outro país.
A semana que
passou foi mais uma evidência de que devíamos tratar melhor quem
escolhe Portugal para viver. Porque há sempre quem subverta a imigração para
uma lógica populista de criminalidade inevitável. Nada mais errado e injusto.
Especialmente porque somos um país com milhões de emigrantes. Ora, por essa
lógica, todos os nossos parentes na diáspora estariam agora atrás de grades de
outros países. Não é assim, pois não? Claro que não. Pior: todos nós ouvimos as
histórias de emigrantes que tiveram de aguentar o preconceito dos nativos dos
países onde procuraram uma vida melhor. Eu posso contar as que conheço bem.
O meu avô esteve 30 anos
num país estrangeiro, onde chorou muitas e muitas noites por não ter forma de
ter uma vida digna no seu país e por não poder ver crescer os seus dois filhos.
Passou longos anos em camaratas com outros portugueses, até ao momento em que
conseguiu, finalmente, uma renda baixa o suficiente para ter uma casa só para
si. A minha mãe viveu uma pequena parte da infância nesse mesmo país e, quando
saía da escola, não era raro ter coleguinhas a atirar-lhe pedras porque não era
“uma das nossas” — até porque nós, “os brancos”, em países mais a Norte, não
somos brancos coisa nenhuma. Nós, portugueses, somos um país de emigrantes, mas
nem sempre tratamos com dignidade os que, à nossa semelhança, tiveram de sair
de casa para conseguir viver melhor. E melhor, entenda-se, não significa
confortavelmente. Porque muitos imigrantes não têm os privilégios dos nativos:
o acesso a emprego, saúde, educação e habitação são muito mais difíceis. E,
para dificultar ainda mais a coisa, os autóctones ainda os tratam com o rótulo
de “este não é dos nossos”, como se se tratassem de humanos de segunda.
Os imigrantes,
assim como os “nossos” emigrantes, são audazes. Provavelmente, porque não
tiveram escolha – é difícil imaginar as dificuldades por que alguém tem de
passar antes de decidir fugir para um país do qual desconhece praticamente
tudo: a língua, os hábitos, até as leis ou as taxas de câmbio. Atrevo-me a
dizer que, se pudessem, estas pessoas estariam no país que as viu nascer, mas
não podem. Vive-se melhor aqui – e quem pode condenar uma decisão destas? Quem,
em plena consciência, poderia agarrar num ser humano e atirá-lo para um destino
incerto, de dores incalculáveis ou, pior, de morte certa? Se o fizermos ou se o
desejarmos, somos nós os selvagens. Não eles. Nunca eles.
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