sexta-feira, 24 de julho de 2015

AS DÍVIDAS INFINITAS


A chamada crise grega tem feito correr muita tinta e, em alguns casos, tem sido um excelente pretexto para análises lúcidas sobre a acção e os objectivos do capitalismo financeiro. Ainda ontem aqui deixámos dois links para reflexões do Prof. Boaventura Sousa Santos, no Público e na Visão, respectivamente, a que juntamos hoje o seguinte texto (*) transcrito do Público, todos de grande qualidade
A menos que se caia numa espiral em que países e povos se tornem escravos deste sistema ignóbil – e tremendamente fomentador da pobreza para uma esmagadora maioria, em favor de limitadas minorias –, algo tem de mudar. Não é possível que numa altura da história da humanidade em que nunca houve tanto dinheiro em circulação, a riqueza esteja tão mal distribuída. Sendo certo que os principais beneficiados da actual fase do capitalismo se sentem seguros apesar do esbulho a que sujeitam as populações, não é menos verdade que, qual panela de pressão sem escape de vapor, a explosão social se pode dar a qualquer momento, tantos são os abusos cometidos.
Recapitulemos as principais lições que até os mais distraídos tiveram obrigação de aprender com a crise grega: 1º) A relação credor–devedor está hoje no centro da vida económica, social e política. Ela veio substituir a relação capital–trabalho que pertence a uma fase anterior do capitalismo e introduziu uma nova técnica de poder e uma nova “governamentalidade”. Essa relação produz um novo sujeito universal que é o “homem endividado” tal como ele foi definido e analisado pelo sociólogo Maurizio Lazzarato. A principal actividade do homem endividado (tal como o seu análogo colectivo: o país endividado) é pagar. Nas antigas sociedades disciplinares, ele seria preso se não pagasse, mas as actuais sociedades não o querem encerrado porque isso seria remetê-lo para o exterior e é preciso que ele não saia do interior da esfera dos credores para continuar a pagar. 2º) A dívida é inesgotável, impagável e infinita. Foi com o capitalismo financeiro que a “divída finita e móvel” de antigamente se tornou “dívida infinita”, como a dívida do homem perante Deus. Esta dívida que não pode ser resgatada funciona segundo o modelo do pecado original: no reino dos homens, o devedor nunca acabará de pagar a sua dívida. Recordemos que, para a teologia cristã, existe uma única instituição legal que não conhece interrupção nem fim: o inferno. Mas há aqui um double bind: segundo a lógica do capital, um povo é tanto mais rico quanto mais se endivida. Se a dívida não fosse infinita e o devedor pudesse, num determinado momento, saldar as suas dívidas, deixava de haver capital, o capitalismo extinguia-se porque desaparecia a relação de forças entre devedores e credores e a dominação política e a assimetria que essa relação supõe. Lazzarato, mostrando que o capitalismo consiste em encadear dívidas umas nas outras, até elas se tornarem infinitas, estabelece uma analogia entre o funcionamento do crédito e a condição em que se vê Joseph K, a personagem de O Processo, de Kafka. 3º) Apesar de a dívida ser impagável e infinita, é necessário manter publicamente a aparência (uma crença que deve circular publicamente) de que ela é finita e pagável. A dívida da Grécia é tão infinita como a de muitos outros países. Mas o problema é que, por várias circunstâncias, ela entrou no campo de uma racionalidade que lhe retirou a máscara que protege muitas outras. Sem essa máscara, ela exibiu-se como monstruosa, isto é, algo que se mostra e, assim sendo, cresce sem controlo. O capitalismo financeiro não vive sem o motor da dívida, mas precisa que se mantenha a promessa de que ela será honrada. Honrá-la não é pagá-la, é manter a possibilidade da fuga em frente. A catástrofe dá-se quando essa fuga é interrompida. 4º) A moeda especificamente capitalista é a moeda de crédito, a moeda-dívida, e não a moeda-troca. O capitalismo financeiro não tem nada a ver com o doce comércio da moeda-troca. Aí estamos numa relação simétrica. A racionalidade do capital é a de uma relação assimétrica. Trata-se de uma “racionalidade irracional” cuja condição normal é o “estado terminal”. 5º) O discurso dos economistas pertence hoje, de direito, à mesma ordem do discurso dos padres e dos psicanalistas: esta é a conclusão a retirar do que foi dito no ponto anterior. 6º) O capitalismo sempre foi capitalismo de Estado. Deleuze e Guattari já o tinham dito em 1972, no Anti-Édipo, mas agora percebemos perfeitamente que o capitalismo nunca foi liberal. A crise grega mostrou-nos claramente até que ponto se deu a integração e a subordinação do Estado à lógica financeira: o Estado age por conta dos credores e das suas instituições supranacionais.
(*) António Guerreiro

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