A
chamada crise grega tem feito correr muita tinta e, em alguns casos, tem sido
um excelente pretexto para análises lúcidas sobre a acção e os objectivos do
capitalismo financeiro. Ainda ontem aqui deixámos dois links para reflexões do
Prof. Boaventura Sousa Santos, no Público e na Visão, respectivamente, a que
juntamos hoje o seguinte texto (*) transcrito do Público, todos de grande
qualidade
A
menos que se caia numa espiral em que países e povos se tornem escravos deste
sistema ignóbil – e tremendamente fomentador da pobreza para uma esmagadora
maioria, em favor de limitadas minorias –, algo tem de mudar. Não é possível
que numa altura da história da humanidade em que nunca houve tanto dinheiro em
circulação, a riqueza esteja tão mal distribuída. Sendo certo que os principais
beneficiados da actual fase do capitalismo se sentem seguros apesar do esbulho
a que sujeitam as populações, não é menos verdade que, qual panela de pressão
sem escape de vapor, a explosão social se pode dar a qualquer momento, tantos
são os abusos cometidos.
Recapitulemos
as principais lições que até os mais distraídos tiveram obrigação de aprender
com a crise grega: 1º) A relação credor–devedor está hoje no centro da vida
económica, social e política. Ela veio substituir a relação capital–trabalho
que pertence a uma fase anterior do capitalismo e introduziu uma nova técnica
de poder e uma nova “governamentalidade”. Essa relação produz um novo sujeito
universal que é o “homem endividado” tal como ele foi definido e analisado pelo
sociólogo Maurizio Lazzarato. A principal actividade do homem endividado (tal
como o seu análogo colectivo: o país endividado) é pagar. Nas antigas
sociedades disciplinares, ele seria preso se não pagasse, mas as actuais
sociedades não o querem encerrado porque isso seria remetê-lo para o exterior e
é preciso que ele não saia do interior da esfera dos credores para continuar a
pagar. 2º) A dívida é inesgotável, impagável e infinita. Foi com o capitalismo
financeiro que a “divída finita e móvel” de antigamente se tornou “dívida
infinita”, como a dívida do homem perante Deus. Esta dívida que não pode ser
resgatada funciona segundo o modelo do pecado original: no reino dos homens, o
devedor nunca acabará de pagar a sua dívida. Recordemos que, para a teologia
cristã, existe uma única instituição legal que não conhece interrupção nem fim:
o inferno. Mas há aqui um double bind:
segundo a lógica do capital, um povo é tanto mais rico quanto mais se endivida.
Se a dívida não fosse infinita e o devedor pudesse, num determinado momento,
saldar as suas dívidas, deixava de haver capital, o capitalismo extinguia-se
porque desaparecia a relação de forças entre devedores e credores e a dominação
política e a assimetria que essa relação supõe. Lazzarato, mostrando que o
capitalismo consiste em encadear dívidas umas nas outras, até elas se tornarem
infinitas, estabelece uma analogia entre o funcionamento do crédito e a
condição em que se vê Joseph K, a personagem de O Processo, de Kafka. 3º) Apesar de a
dívida ser impagável e infinita, é necessário manter publicamente a aparência
(uma crença que deve circular publicamente) de que ela é finita e pagável. A
dívida da Grécia é tão infinita como a de muitos outros países. Mas o problema
é que, por várias circunstâncias, ela entrou no campo de uma racionalidade que
lhe retirou a máscara que protege muitas outras. Sem essa máscara, ela
exibiu-se como monstruosa, isto é, algo que se mostra e, assim sendo, cresce
sem controlo. O capitalismo financeiro não vive sem o motor da dívida, mas
precisa que se mantenha a promessa de que ela será honrada. Honrá-la não é
pagá-la, é manter a possibilidade da fuga em frente. A catástrofe dá-se quando
essa fuga é interrompida. 4º) A moeda especificamente capitalista é a moeda de
crédito, a moeda-dívida, e não a moeda-troca. O capitalismo financeiro não tem
nada a ver com o doce comércio da moeda-troca. Aí estamos numa relação
simétrica. A racionalidade do capital é a de uma relação assimétrica. Trata-se
de uma “racionalidade irracional” cuja condição normal é o “estado terminal”.
5º) O discurso dos economistas pertence hoje, de direito, à mesma ordem do
discurso dos padres e dos psicanalistas: esta é a conclusão a retirar do que
foi dito no ponto anterior. 6º) O capitalismo sempre foi capitalismo de Estado.
Deleuze e Guattari já o tinham dito em 1972, no Anti-Édipo, mas agora percebemos
perfeitamente que o capitalismo nunca foi liberal. A crise grega mostrou-nos
claramente até que ponto se deu a integração e a subordinação do Estado à
lógica financeira: o Estado age por conta dos credores e das suas instituições
supranacionais.
(*) António
Guerreiro
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