Numa
altura em que a Grécia tem em cima dos ombros uma promessa de esmagamento por
ter ousado colocar em causa o poder imperial germânico na União Europeia e o
pensamento único ao serviço dos mercados e do capital financeiro, convém dar
uma olhada pela história recente e, de um modo particular, o triste cruzar de
braços dos partidos “socialistas” que contribuíram para um abrir das portas à
ocorrência de duas destruições da Europa na primeira metade do século XX.
Esta
situação e a consentida desregulação dos mercados são o tema do excelente
artigo do Prof. Mário Vieira de Carvalho com o título acima e que transcrevemos
do Público de hoje.
O
Sr. Merkel ensina ciência política na Humboldt-Universität a poucos quarteirões
da chancelaria da Sr.ª Merkel. São ambos alemães e até têm o mesmo nome, mas
pensam de maneira diferente.
É
um alívio, não fosse a gente alarmar-se com uma nova Gleichschaltung (sincronização) à maneira de
Goebbels que punha todos a ler pela mesma cartilha. As declarações de Sigmar
Gabriel e Martin Schultz sobre o referendo grego fizeram-nos temer por isso.
Pois se já nem os putativos socialistas alemães têm um pensamento e um projeto
próprios – se já nem eles dão ouvidos a intelectuais como Habermas e outros
críticos do atual curso da UE, que sempre lhes foram próximos – que poderá
acontecer à herança humanista da cultura alemã?
Peter
Weiss, no seu romance Estética da Resistência (1975-1981), assaca aos socialistas alemães
graves responsabilidades na eclosão da primeira guerra mundial, e na ascensão
(“resistível”, como diria Brecht) de Hitler ao poder, a qual, por sua vez,
levou à segunda guerra mundial. O seu diagnóstico é duro. Fala de traição da
social-democracia e cita o Diário
de Heine, em Paris: “a única teoria capaz de abalar o poder da alta finança foi
a ideia de comunismo”. Quase dois séculos depois, será que Heine continua
a ter razão?
Com
efeito, nas últimas décadas, como observa o Sr. Merkel (entrevista publicada no
jornal Social
Europe, de
10 de Julho), “as democracias removeram a maior parte dos limites antes
utilizados para conter o capitalismo, e fizeram-no consciente e
negligentemente”. “Ao desregular os mercados, especialmente os mercados
financeiros, a democracia privou-se do seu próprio poder”. “Em questões
cruciais de política monetária, orçamental e fiscal, quem dá o tom são os
investidores mais poderosos, crises bancárias ou supostos constrangimentos de
ordem prática, e não as maiorias democráticas”. “A desnacionalização económica
contribuiu de forma alarmante para este processo, sobretudo no que respeita ao
controlo democrático sobre importantes parâmetros económicos”. “A política
orçamental de cada Estado, um elemento-chave no esforço por criar uma sociedade
justa, perdeu importância”, enquanto, por outro lado, “a União Europeia,
sobretudo empenhada na lei da concorrência, se tornou uma espécie de cavalo de
Tróia dos mercados, em vez de se afirmar como baluarte contra a despolitização
dos mesmos”.
Por
isso – continua Wolfgang Merkel –, temos de arrepiar caminho e “obrigar os
mercados a ser de novo mais conformes à democracia”. “A tarefa que temos pela
frente é, pois, a de devolver mais poder ao Estado democrático”, o que não pode
ser feito “sem reconquistar parte do território que cedemos ao capital
desregulado”. “O capitalismo não pode ser domado pela sociedade civil... Sem um
forte Estado democrático as nossas sociedades não podem ser estruturadas
decentemente.” “Sejamos claros: a longo prazo, os mercados desregulados
destroem-se a si próprios e destroem a coesão social”.
Neste
diagnóstico, a situação é, pois, vizinha da anarquia (ausência de Estado). Não,
da anarquia que Marx e Engels prefiguravam no Manifesto de 1848 como realização
última do ideal comunista: “uma associação em que o livre desenvolvimento de
cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mas sim de um
outro tipo de anarquia, que não devia assustar menos os tradicionais defensores
da Família e da Propriedade: aquela em que todo o Direito é derrogado por uma
única norma: a da otimização permanente e ilimitada da taxa de remuneração do
capital.
Numa tal situação já nem se
pede aos socialistas europeus que empunhem agora de novo a bandeira do
socialismo. Não é preciso ir tão longe. Basta que lutem, ao menos, por... um
“capitalismo de rosto humano”.
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