Os
portugueses mais velhos lembram-se bem de que no tempo da ditadura qualquer crítico
do salazarismo era logo apelidado de comunista ainda que fosse proveniente do
interior do regime. Exemplos não faltam mas o de Humberto Delgado é o mais conhecido,
pagando com a própria vida a ousadia de enfrentar o ditador.
Nos
tempos que correm existe um paralelismo com o que se passava durante a
ditadura, mas agora relativamente a personalidades cuja coragem e coerência de posições
ao longo do tempo os mantêm do lado de fora das “mansões menores do poder”. As suas
palavras duras em relação à linha seguida pelo Governo são muitas vezes mais
contundentes do que as proferidas por “esquerdistas” e “radicais” encartados.
Ficam, assim, expostos a toda a casta de insultos pelos apaniguados do regime
que se sentem atingidos mas não possuem argumentos válidos de contestação.
Este
é o tema do artigo que Pacheco Pereira assina no Público de hoje e que aqui deixamos
na íntegra apesar da sua extensão.
Já
tenho usado algumas vezes a frase da Tempestade de Shakespeare sobre os
“estranhos companheiros de cama” gerados pela “miséria” dos dias que
atravessamos.
A
citação em inglês é "misery acquaints a man with strange bedfellows" e refere-se a uma
altura em que Trinculo, para se proteger da tempestade, se mete debaixo do
manto de Caliban. Trinculo achava que Caliban era uma espécie de peixe, antes
de lhe reconhecer forma humana, e Caliban olhava com desconfiança Trinculo que
lhe parecia um espírito atormentado. “Estranhos companheiros de cama”.
Existe
hoje na vida política portuguesa uma série de “estranhos companheiros de cama”,
cuja voz pública tem sido muitas vezes, aliás quase sempre, das mais duras
contra a situação, contra o governo da coligação PSD-CDS. Incluo-me nesse grupo
de pessoas e escrevo sobre elas não porque ninguém sinta qualquer necessidade
de o justificar, bem pelo contrário, mas porque este fenómeno político é uma
característica dos nossos dias e merece ser analisado. Muitas das críticas com
mais sucesso ao actual poder, todas percursoras e algumas que se tornaram
virais, vieram desse grupo de pessoas e não de outras em que, pelo seu
posicionamento político, teriam sido mais previsíveis.
Num
comício sobre a Grécia, falei ao lado de dois membros do Bloco de Esquerda,
Louçã e Marisa Matias, de um economista comunista Eugénio Rosa, de um
socialista Manuel Alegre, da escritora Hélia Correia e do democrata-cristão
Freitas do Amaral. Algumas das palavras mais duras nessa sessão sobre o “estado
da Europa” vieram da mensagem de Freitas do Amaral. Durante a semana, Bagão
Félix e Manuela Ferreira Leite, pronunciaram críticas muito duras ao governo,
como aliás fazem já há alguns anos. Em matérias mais específicas, como por
exemplo, as questões de soberania ou a situação das Forças Armadas, Adriano
Moreira e Loureiro dos Santos, não tem poupado a acção governativa, com
críticas de fundo e de grande gravidade. Podia continuar com vários exemplos de
outros homens e mulheres, que estão longe de serem revolucionários, radicais,
extremistas mas cuja voz se ergueu com indignação face ao mal que está ser
feito ao país, com intolerância face ao erro e com um espírito analítico
certeiro. “Quem fala assim não é gago”, é uma frase que se lhes pode
aplicar.
Também
por isso são alvo de uma enorme raiva, impropérios, insinuações, acusações que
transpiram do lado situacionista, no terreno anónimo dos comentários não
moderados, que não são senão reproduções das conversas obscenas que certamente
se travam nos bares da moda e nas reuniões partidárias das “jotas”. São os
“velhos do restelo”, até porque na maioria não são novos, que se opõem à
gloriosa caminhada governativa émula das Descobertas, não se percebe bem para
quê, nem com que gente valorosa e destemida. São os “treinadores de bancada”,
na linguagem futebolística que se lhes cola como um fato de treino, os que “só
dizem mal”, “que falam, falam” mas não fazem nada. São os “ressabiados” porque
não lhes foram dadas sinecuras, lugares, posições, quiçá negócios, a que
julgavam ter direito. Esta crítica é muito interessante porque é espelhar, quem
a faz vê-se ao seu próprio espelho
O
que verdadeiramente não suportam é a independência alheia. “Jovens” de quarenta
anos, cuja carreira, se reduz a cargos partidários e as respectivas nomeações
como “boys”, escrevem e vociferam tudo isto. E afirmam com jactância que
ninguém ouve os “velhos do Restelo”. Estão bem enganados, em termos de
audiências, partilhas, e influência, são no chamado “espaço mediáticos” dos
mais ouvidos, vistos e influentes. Falo dos outros e não de mim, mas também não
me queixo.
A
tempestade que criou estes “estranhos companheiros de cama” explica a sua
emergência e o manto que os cobre. Em partidos como o PSD e o CDS, mas em particular
no PSD, houve uma clara deslocação à direita, violando programas e práticas
identitárias, já para não falar do legado genético do seu fundador Francisco Sá
Carneiro. Esta deslocação de um partido que foi criado pelo desejo fundador de
ser o partido da social-democracia portuguesa, consciente de que num país como
Portugal a “justiça social” era uma obrigação de consciência e de acção, levou
à sua descaracterização. E pior ainda, à mudança do seu papel reformador na
sociedade.
O
PSD que está no governo e que manda no partido, com as suas obscuras
obediências maçónicas, com o seu linguajar tecnocrático, com a sua noção de que
a “economia” são os “empreendedores” e não os trabalhadores, com os seus sonhos
de criar um homem novo ao modelo de Singapura, com o seu desprezo pequeno
burguês… pela burguesia, pela sua vontade de agradar aos poderosos do mundo,
pela subserviência face ao estrangeiro, encheu-se de pessoas cujo currículo é
constituído pelos cargos internos no partido e pelos cargos públicos a que ser
do partido dá acesso. A sua repulsa e indignação pela corrupção é escassa para
não dizer nula, e personagens cujos negócios são clientelares, para não dizer
mais, são elogiados em público, servem de conselheiros e são nomeados para
cargos de relevo. O que é que se espera que gente como Manuela Ferreira Leite,
que é de outra escola da vida, diga?
E
que posições tem defendido estes “estranhos companheiros de cama” que justifica
serem tratados pelos boys
como sendo, pelo menos, cripto-comunistas? Falam de facto de coisas perigosas e
subversivas, como do patriotismo e da soberania, falam de um Portugal que não
se exibe apenas á lapela. Falam da democracia e do risco do voto dos
portugueses não servir para nada, visto que o nosso parlamento tem cada vez menos
poderes. Falam dos portugueses que não andam de conferências de jornais
económicos, a programas de televisão a explicar que as eleições são um “risco”
para a economia. Falam dos outros portugueses, dos enfermeiros e dos
professores, dos médicos e dos jovens arquitectos sem trabalho, dos pescadores,
dos agricultores, dos operários (sim, ainda existem), dos funcionários do
estado, insultados e encurralados, da pobreza que se esconde e da que se vê.
Falam das desigualdades que crescem, da pobreza envergonhada que existe na
classe média, do confisco fiscal, das prepotências da administração, da
indiferença face aos mais velhos, aos reformados e pensionistas. Falam muitas
vezes com a voz da tradição cristã, da doutrina social da Igreja, dos que foram
deixados cair no desemprego, das mulheres que antes eram operárias e ganhavam o
seu sustento e hoje são donas de casa, falam dos “piegas” que perderam a casa,
o carro, e pior que tudo, a dignidade de uma vida decente.
Deviam
estar calados, porque isto é “neo-realismo”. Estes são os portugueses de que
não se deve falar. E fazem-no para defenderem nacionalizações, para atacarem a
economia de mercado, a propriedade? Não. Falam muitas vezes porque são
conservadores e genuínos liberais, gostam do seu país e gostam dos portugueses,
da democracia e da liberdade. Eu sei, tudo isto é hoje revolucionário.
Mas
há mais. Sentem, como se numa mais que sensível pele, a hipocrisia dominante,
ao ver aqueles que destruíram muita da política de Mariano Gago, a elogiar o
seu papel na ciência em Portugal, ou quem afastou Maria Barroso da Cruz
Vermelha a elogiar as suas virtudes como “grande senhora”. E sabem porque tem
sucesso e influência? Porque a sua indignação é genuína e não mede as suas
palavras num país de salamaleques, e não falam por conveniência própria nem por
obediência partidária. Se fossem mais cordatos e mais convenientes, teriam
certamente honras, lugares e prebendas.
Por
tudo isto, quando chove e venta e troveja, a manta de Caliban é bem-vinda. É
meio peixe? Talvez, mas como não conto ir nadar para o mar dele e ela não conta
vir para o meu, une-nos a manta que nos protege da tempestade. E enquanto chove
e venta e troveja são os “meus estranhos companheiros de cama” contra a chuva,
o vento e a trovoada. Penso, aliás como Churchill, que se o Diabo entende
atacar Hitler, sou capaz de dizer umas palavras amáveis sobre o Inferno na
Câmara dos Comuns.
É este espírito que “os
estranhos companheiros de cama” têm tido a coragem de trazer para a vida
pública portuguesa em que tudo desune e nada junta, mesmo quando o adversário
usa de todas as armas. É por isso que, a seu tempo, ficarão como resistentes
desta tempestade e não gente que foi à primeira chuvinha abrigar-se nas mansões
menores do poder.
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