O
texto seguinte é uma análise de muita qualidade da autoria de José Vitor
Malheiros, que capturámos no Público de hoje, sobre os resultados do referendo
realizado na Grécia no último domingo.
Depois
de uma manifestação tão clara da vontade do povo helénico, os chefões do
neoliberalismo europeu continuam a meter pedras na engrenagem que poderá levar
a um acordo entre Governo grego e as chamadas instituições (vulgo troika). A vontade de criar atritos que dificultem as
negociações é notória, tendo como testa de ferro destas intenções o “socialista”
holandês Jeroen Dijsselbloem. Seria interessante que os “socialistas”
portugueses se pronunciassem sobre a acção radical deste sujeito…
A
vitória do "não" na Grécia foi a vitória da democracia contra a
tirania, a vitória da política contra a burocracia, a vitória da liberdade
contra a ditadura financeira, a vitória dos cidadãos contra os capatazes, a
vitória da soberania nacional contra o colaboracionismo, a vitória da dignidade
contra a chantagem, a vitória da honra contra a subserviência, a vitória da
coragem contra o medo, a vitória da ousadia.
Os
gregos deram este domingo a toda a Europa e a todo o mundo uma lição de coragem
e de dignidade pela qual não podemos deixar de nos sentir devedores e gratos.
É
surpreendente descobrir, de súbito, nesta envilecida Europa do racket e da
negociata, nesta Europa da fuga aos impostos legalizada, nesta Europa capturada
pela Alemanha, nesta Europa colonialista de proximidade que quer transformar os
países devedores nas eternas vacas leiteiras dos mais ricos, nesta Europa onde
quase todos os políticos parecem ter sido comprados pelo grande capital ou
aspirarem a sê-lo, nesta adormecida Europa onde a democracia é sempre recebida
com um esgar de desprezo, nesta Europa onde pontificam seres com a
honorabilidade de um Jeroen Dijsselbloem ou de um Jean-Claude Juncker, nesta
miserável Europa que nem sequer admite receber os refugiados que tentam fugir à
morte através do Mediterrâneo, é surpreendente descobrir, dizia, que talvez
ainda seja possível uma réstia de democracia. E isso é algo que não pode deixar
de nos emocionar e de nos dar alguma esperança.
O
referendo grego mostra, acima de tudo, que a União Europeia pode não ser
incompatível com a democracia, como tudo o que tem acontecido na Europa desde o
Tratado de Maastricht parece provar, como tudo o que tem acontecido na União
Económica e Monetária parece tornar evidente. Aquele que se orgulhava de ser o
"clube das democracias" está de facto cada vez mais próximo de ser o
"carrasco das democracias" e o referendo grego pode dar a esta
trajectória assassina a inflexão moral que todos os democratas desejam.
Não
é apenas a vitória do "não" que é surpreendente, mas a dimensão dessa
vitória, atendendo à pressão que foi colocada nos últimos dias sobre os
cidadãos gregos, ameaçando-os de todas as formas possíveis e tentando
aterrorizá-los com o que aconteceria caso se atrevessem a votar nesta opção.
Eurocratas de direita ou nominalmente de esquerda, como o senhor Dijsselbloem
ou o senhor Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu; políticos europeus
de direita ou nominalmente de esquerda, como Matteo Renzi ou François Hollande,
todos tentaram apresentar o "sim" como a única escolha razoável,
porque garantia a manutenção da Grécia no euro, e o "não" como um
voto irresponsável e suicida, porque empurraria a Grécia para fora do euro.
Martin
Schulz, o homem que gosta de se mostrar moderado, fez questão de afirmar que um
voto "não" significaria o fim imediato do financiamento europeu e que
"sem dinheiro, os salários não poderiam ser pagos, o sistema de saúde
deixaria de funcionar, o fornecimento de electricidade e o sistema de
transportes públicos ficaria paralisado". O auto-excluído ex-ministro das
Finanças grego, Yanis Varoufakis, terá exagerado muito ao falar de
"terrorismo"?
Não
só políticos europeus de vários sectores mas as próprias autoridades europeias,
que deveriam estar obrigadas pelo seu cargo a uma estrita equidistância das
várias posições em jogo, não hesitaram em apelar descaradamente à mudança de
regime na Grécia, à substituição do democraticamente eleito governo do Syriza
por um governo de tecnocratas que obedecesse a Bruxelas. Pouco faltou para que
Bruxelas apelasse a um golpe de Estado em Atenas. Se alguém queria
certificar-se de quão fino é o verniz democrático que cobre a política
europeia, os últimos dias deram-nos uma resposta cabal e terrível. Na UE a
democracia só é respeitada quando produz o efeito desejado pelo poder
financeiro - leia-se, no caso concreto, pela Alemanha.
Quanto
àquilo que seria o custo político, económico, social e humano do
"sim" e da aceitação de um acordo draconiano que manteria a Grécia na
miséria durante décadas ou mesmo eternamente, ninguém, nos órgãos europeus, se
preocupou. O voto grego foi um voto de rejeição de todas estas pressões e, por
isso, é duplamente respeitável.
É
interessante ver a cobertura mediática que foi feita na Grécia durante a curta
campanha antes do referendo. Uma medição feita nas seis principais estações de
TV do país de duas grandes manifestações de sinal oposto deram um resultado
claro: a manifestação do "sim" mereceu 46 minutos de cobertura; a
manifestação do "não", 8 minutos. A vitória do "não" é
também uma vitória contra a manipulação da informação.
É
verdade que ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos dias e que a promessa
de Tsipras de um acordo com a UE em 48 está longe de estar garantida. O que a
UE não pode ignorar é que o povo soberano da Grécia disse não à austeridade,
que mandatou o seu governo para não aceitar mais austeridade e que quer ficar
no euro. Assim, a UE tem duas opções: ou muda de atitude e se coloca do lado da
solução da crise, da solidariedade, da democracia e do progresso económico ou
expulsa a Grécia e, a curto prazo, rebenta.
Quanto ao governo grego que,
devido à sua atitude conciliatória e à sua tentativa de manter a discussão
aberta em vários tabuleiros, teve nos últimos meses um percurso por vezes
difícil de compreender, deveria dar uma absoluta e permanente transparência a
todos os passos das negociações, incluindo as respostas "informais"
que receber. O povo grego precisa de saber e perceber o que está a acontecer
para demonstrar o seu apoio. E não só o povo grego. Nesta batalha pela
democracia e pela justiça social na Europa, há muitos milhões de cidadãos de
muitos países ao lado de Atenas. E o povo não desistiu da democracia.
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