A
Iniciativa Legislativa de Cidadãos que amanhã vai ser discutida na Assembleia
da República e que tem por finalidade alterar a Lei da Interrupção Voluntária
da Gravidez (IVG) aprovada em referendo em 2007 é, não tenhamos dúvidas, um
primeiro passo para o esvaziamento ou mesmo a revogação daquela Lei, a longo
prazo, caso a correlação de forças na Assembleia da República lhes seja
favorável. Estamos perante um grupo extremista que não desiste dos seus
objectos, por mais ignóbeis que eles sejam. A chantagem psicológica que exercem
sobre os cidadãos é disso prova, além de que a sua argumentação assenta em
premissas falsas, aliás, referidas no seguinte artigo de opinião (*) que
transcrevemos do Público de hoje.
É
falso que a despenalização da IVG tenha levado à utilização do aborto como
método contraceptivo.
É
falso que a despenalização da IVG tenha como consequência a liberalização do
aborto.
É
falso que o número de casos de aborto tenha vindo a aumentar.
Segundo
a Direcção Geral de Saúde, enquanto entre 2002 e 2007 houve 14 mortes maternas “notificadas”
relacionadas com aborto clandestino, em 2011 e 2012 não se verificou qualquer
caso.
Uma
Iniciativa Legislativa de Cidadãos promovida pelo movimento “Direito a Nascer”
vai ser amanhã discutida no Parlamento. O objectivo desta proposta é sobretudo
alterar a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), aprovada em 2007
(bem como as demais normas laborais, de protecção social, etc., relacionadas
com esta questão), vinda na sequência do referendo em que 59,25% dos
portugueses que foram às urnas afirmaram que o aborto realizado até às dez
semanas de gravidez, por opção da mulher, devia ser despenalizado.
Nesta
altura, a maioria dos portugueses considerou que o Estado não tinha o direito
de proibir a IVG, nem de a penalizar (em nome de uma qualquer perspectiva moral
que nunca seria generalizadamente partilhada). Ora, foi isto que a direita
social nunca conseguiu aceitar e, por isso, o projecto-lei discutido amanhã
vem, precisamente, propor uma série de mecanismos que funcionam como
penalizações das mulheres que, dentro da lei, decidam recorrer à IVG.
Os
promotores desta iniciativa legislativa procuram justificar-se e uma das razões
para a sua iniciativa é o facto, dizem-nos, de a despenalização ter levado “à
liberalização e promoção do aborto”. Nada podia ser mais falso. A IVG nunca foi
liberalizada, mas apenas despenalizada até às dez semanas (além de se manterem
os casos já anteriormente previstos na lei), garantindo-se que a mulher tem
acesso a toda a informação médica e sobre as condições de apoio do Estado caso
decida prosseguir com a gravidez, que terá um período de reflexão de três dias
após a primeira consulta, que será posteriormente encaminhada para consulta de
planeamento familiar.
Além
disso, sabe-se que os números de casos de aborto têm vindo a diminuir e não a
aumentar, ao contrário do que sugere a proposta. O estudo da Direcção Geral de
Saúde, apresentado na semana passada, mostrou que se realizaram 16.589 abortos
em 2014, menos 1.692 do que no ano anterior, o que corresponde a uma quebra de
9,3%, seguindo uma tendência que se verifica nos últimos anos. A taxa
portuguesa de repetição de aborto é das menores do mundo e está abaixo da média
europeia, sendo impossível dizer-se, como dizem os promotores desta iniciativa,
que o aborto seja encarado como método contraceptivo.
A
proposta do “Direito a Nascer” assenta, pois, em premissas não verdadeiras. E,
lendo o seu texto, é fácil perceber que as mudanças legislativas apresentadas
têm o intuito de criar novas formas de punição das mulheres. Desde logo, quer
impor-se que a mulher que decida realizar uma IVG seja obrigada a ver e a
assinar a ecografia que lhe é feita. Esta prática em nada contribui para a
informação e esclarecimento da mulher e não há qualquer razão médica para que
uma mulher, que optou – dentro da lei! – por realizar uma IVG, seja sujeita –
pelo Estado que autoriza essa IVG! – a visualizar a ecografia, se isso for
contra a sua vontade. A explicação para esta ideia é simples: continuar a
penalizar as mulheres – se já não criminalmente, agora emocionalmente.
Um
outro conjunto de propostas emblemáticas desta iniciativa do “Direito a Nascer”
tem que ver com o facto de se procurar pôr fim ao direito a baixa médica, à
justificação de faltas, ou à comparticipação de medicação, entre outras, se
estas forem necessárias por razões de saúde da mulher. Todas estas medidas –
que roçam a desumanidade – consistem, no fundo, em novas formas de punição das
mulheres que optam por abortar nos termos da lei.
Esta
iniciativa cidadã também defende o fim da isenção de taxas moderadoras na
realização da IVG – uma ideia a que PSD e CDS parecem ter aderido, uma vez que
vai igualmente discutir-se um projecto-lei, da sua autoria que visa o mesmo
fim. Instituir o pagamento desta taxa irá dificultar o acesso a este cuidado
médico e até de introduzir desigualdades nesse acesso, pois mulheres de menores
rendimentos (ainda que não isentas do pagamento) ficarão necessariamente
prejudicadas relativamente àquelas que dispõem de rendimentos maiores. Mesmo o
argumento sobre a eventual “injustiça” de a IVG ser “gratuita”, enquanto outros
cuidados médicos são alvo de taxa moderadora no SNS, talvez ele nos devesse
levar antes a discutir se estes últimos não deveriam ser, também eles,
gratuitos, em vez de procurarmos introduzir um co-pagamento na IVG. De qualquer
modo, a justificação para a inclusão de taxas moderadoras na IVG não é financeira,
sobretudo porque se sabe que uma grande parte das mulheres que a ela recorre
estaria isenta do pagamento (por situação de desemprego, insuficiência
económica, por serem estudantes, menores de idade). A justificação (encapotada)
é, mais uma vez, moral.
A
iniciativa legislativa contém outras propostas que vão no mesmo sentido:
introduzir penalizações contra as mulheres que recorram à IVG. Consiste, por
isso, num expediente para contrariar o espírito da lei que os portugueses
democraticamente determinaram em referendo. E devemos, por isso, esperar que
PSD e CDS se juntem aos partidos de esquerda na sua rejeição.
(*)
Ana Rita Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário