O
processo de desordenamento do território que durante alguns anos esteve mais ou
menos controlado, voltou à ordem do dia, com consequências altamente lesivas
para a esmagadora maioria dos portugueses. É sobre este tema muito actual que a
socióloga Luísa Schmidt assina no "Expresso" deste sábado, um artigo de opinião
cujo conteúdo reproduzimos a seguir.
Durante anos a causa principal das
maleitas ambientais no nosso país foi sempre a mesma: o desordenamento do
território e os seus ciclos viciosos.
Houve
um tempo em que, fosse por boas razões — melhor administração e melhores leis —
fosse por más — a crise que tolheu a economia e a sociedade —, a maleita
parecia menos aguda. Infelizmente a febre volta a subir e volta a ser sintoma
de um descontrolo que está a recolocar o país de novo em rota de
desordenamento.
Não
é preciso fazer investigações sofisticadas nem meter o nariz em segredos. Basta
abrir as páginas do imobiliário e ver a publicidade aos empreendimentos. Basta
ver os anúncios aos créditos oferecidos por vários bancos a cavalo de vários
cartões e promessas.
Em
Armação de Pera a “30 metros da praia”... é assim que se anuncia um grande
empreendimento imobiliário. Depois de tudo o que aconteceu e se sabe sobre os
riscos das zonas costeiras, eis que crescem mais prédios frente às ondas.
Em Oeiras,
na encosta da Serra de Carnaxide, o que sobra de proteção ambiental, dada a
intensidade de ocupação do território em redor, fora decidido acautelar solos,
água, ar, zona verde. Por um passo de magia, entre dois planos municipais, a
zona de segurança e qualificação desapareceu e passou a solo urbano, ou seja,
para prédios e mais prédios ... acabando com uma das últimas zonas verdes do
concelho de Oeiras.
Em Lisboa —
não bastava o processo galopante de gentrificação e expulsão dos residentes
incluindo idosos que a solicitude cristã que inspirou a lei das rendas à líder
do PP veio agilizar, exponenciada pelos vistos gold e pelos
investimentos imobiliários globais — acresce agora a convulsiva edificação da
zona ribeirinha. Não é só a barreira que cria às históricas encostas das nossas
colinas, ao seu sistema de vistas e ao espraio para o rio. É a sofreguidão com
que, usando grandes ateliês de arquitetura, o imobiliário vai descarregar onze
prédios de sete andares em Alcântara, mais todo o trânsito que a vida desses
prédios vai pôr a entrar e a sair não se sabe por onde, tudo isto à cota zero.
E não fica por aí, o mesmo se vai passar no Aterro da Boavista em Santos — com
prédios de oito andares mais dois pisos técnicos na Boavista Nascente e
Boavista Poente. E, mais adiante, a sobrecarregada urbanização da Matinha.
Depois,
dentro da cidade há muitos outros casos que o gigantismo balofo do
megaimobiliário prepara e que se desdobrarão num pesadelo de tráfego urbano e
de obstrução exibicionista à cidade histórica.
O problema
não está na construção de prédios. O problema está na desmesura e até na
fealdade: duas razões que a lei prevê poderem ser motivo de não aprovação por
parte das câmaras e que nunca conseguem vingar porque alguns direitos por
algumas vias tortas conseguiram algemar a lei, a cidadania e o futuro.
Quando
chegamos ao ponto de o presidente da CML vir confessar-se impotente para
chumbar aquilo que ele próprio considerou um ‘mono’, como aconteceu no Largo do
Rato, sentimos que vivemos em duas repúblicas: uma é a nossa e chama-se país;
outra pertence ao imobiliário, à banca, aos gabinetes de advogados e de
arquitetos, aos grandes negócios que se combinam à revelia de todos nós.
A irracionalidade deste sistema duplo corrói o país.
Muitas vezes não só corrói como corrompe. A história a seguir já todos a
conhecem: ficarão as despesas para pagarmos, incluindo dívidas e riscos que não
se acautelaram; o território por reabilitar, e mais uma vez a moralidade da
história que ninguém quis aprender.
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