Não é demais recordar que a saúde constitui um dos negócios mais rentáveis e apetecíveis do planeta. Por este motivo, não é por acaso que nos últimos se vem assistindo em Portugal a uma crescente proliferação de clínicas privadas e à degradação dos serviços públicos de saúde promovida por políticas de direita, nem sempre levadas a cabo por Governos de direita. Neste aspecto, também o PS tem a sua quota-parte de culpa de que não se pode eximir.
É,
pois, da maior importância que as forças de esquerda dediquem a maior atenção à
defesa do serviço público de saúde e que os próprios cidadãos não descurem a importância
que o Serviço Nacional de Saúde tem para a qualidade de vida dos portugueses.
No
texto seguinte que transcrevemos do “Público” de hoje, o seu autor (*) aborda,
muito a propósito, a necessidade de uma acérrima defesa do serviço público de
saúde.
Dois comentários de especialistas em Saúde Global
publicados na passada semana na revista The Lancet, uma das mais
influentes publicações médicas do mundo, trazem novos elementos para a reflexão
sobre as alegadas virtudes das parcerias público-privadas no campo da saúde,
desta vez à escala global.
Em janeiro de 2018, no Forum Económico Mundial de
Davos, o recém-designado diretor do Fundo Global para o combate à Sida,
Tuberculose e Malária anunciava a celebração de parcerias entre o Fundo e
várias empresas privadas e instituições financeiras. O Fundo foi criado em
2002, para financiar o combate a doenças tratáveis que afetam e matam sobretudo
populações do Sul global. Apesar de tensões em torno das estratégias a seguir e
do modo como os fundos deveriam ser utilizados, houve alguns importantes
avanços, em particular, no combate à Sida e a doenças associadas a esta. Foi
disponibilizado tratamento antirretroviral a muitas pessoas afetadas, graças em
particular à ação de profissionais, ativistas, movimentos sociais e alguns
governos e organizações não-governamentais, para ultrapassar as resistências
baseadas em cálculos de custo-benefício que postulavam a prevenção sem
tratamento, o elevado preço dos medicamentos praticado pelas empresas
farmacêuticas e a persistência de preconceitos e estereótipos culturais e
raciais herdados da dominação colonial.
As novas parcerias, com a Unilever, a Heineken e o
banco Lombard Odier, permitiriam mostrar, segundo um dirigente desse banco, que
os investidores já não têm de escolher entre “fazer o bem” e “sair-se bem” –
financeiramente, entenda-se. Ou seja, as parcerias seriam novas oportunidades
de negócio para os parceiros do setor privado. Acontece que o Lombard Odier, já
antes da parceria com o Fundo, se tornara conhecido pelo seu envolvimento numa
série de problemas, escândalos e irregularidades financeiras em vários países
ao longo dos últimos anos... Este caso serve para nos lembrar que parcerias com
instituições financeiras e interesses privados, independentemente da
escala – local, nacional ou global – em que se realizam, tornam o setor da
saúde vulnerável às práticas próprias dos “modelos de negócio” adotados por esses
parceiros e às suas consequências, especialmente quando elas são submetidas às
regras de funcionamento e de gestão próprias do setor privado. Os conflitos de
interesse são um sintoma de um confronto persistente entre o reconhecimento da
saúde como um direito humano e a captura da saúde pelo capital, como um espaço
de novas oportunidades de negócio. Os sistemas públicos de saúde financiados
pelos cidadãos através do Orçamento do Estado ou de fundos disponibilizados por
Estados ou organizações multilaterais constituem um apetecido terreno para a
subordinação de um setor fundamental da vida social à lógica do mercado e da
concorrência, que privilegiará sempre a procura de resultados económicos sobre
a proteção e promoção da saúde – como se lia num recente documento do banco de
investimento Goldman-Sachs, “curar doentes” não é um “modelo de negócios
sustentável”...
Desde a aprovação, em 1948, da Declaração Universal
dos Direitos Humanos e da Constituição da Organização Mundial da Saúde,
consagrando a saúde como um direito humano, a defesa e promoção desse direito
através da universalização dos cuidados de saúde e da garantia de condições
para uma vida saudável foram inscritas nas constituições de diferentes países,
como Portugal, o Brasil ou a África do Sul. Afirmava-se assim o direito a
cuidados de saúde acessíveis independentemente da capacidade financeira,
classe, género, orientação sexual, raça ou etnia, religião ou lugar de
residência, garantido por serviços públicos de qualidade e com cobertura universal
e gratuita. O Estado Social que marcou a era pós-Segunda Guerra Mundial na
Europa foi uma das formas de realização desse ideal, de que é exemplo, em
Portugal, o Serviço Nacional de Saúde.
No mesmo sentido, há precisamente 40 anos, em Alma
Ata, no Cazaquistão, realizou-se uma conferência internacional que tinha como
lema “Saúde para todos no ano 2000”, definindo como prioridade o acesso do
conjunto da população mundial a cuidados primários de saúde de qualidade. Os
compromissos assumidos nessa conferência foram confrontados, desde então, por
interesses que promoveram a ideia de cuidados de saúde seletivos, diferenciados
em função da capacidade financeira das populações, comunidades e pessoas que a
elas recorriam. Acompanhando os programas de ajustamento estrutural, as
intervenções em saúde no plano global, e em particular nos países do Sul
global, foram reorientadas para programas verticais, financiados por doadores e
sob controlo destes, dirigidos a problemas de saúde específicos – como a Sida,
malária ou tuberculose –, sem conferir prioridade à construção e fortalecimento
dos serviços públicos e dos saberes e práticas locais de cuidado.
No mês de outubro, em Astana, de novo no Cazaquistão, nova
conferência, no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, terá como
lema a "Cobertura Universal de Cuidados de Saúde". Será mais uma
arena do combate solidário pela afirmação do direito humano à saúde, no Norte
como no Sul. A luta pela defesa dos serviços públicos de saúde contra o assalto
neoliberal é, literalmente, uma luta pela vida, contra a morte prematura, a
doença e o sofrimento, pelo acesso aos cuidados, pelo direito a uma vida
saudável, pelo reconhecimento dos saberes e práticas de cuidado que garantem a
defesa da vida e de uma existência digna.
(*) João Arriscado
Nunes, prof. universitário e investigador do CES
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