Segundo
se pode ler numa enciclopédia, eutanásia “na Grécia antiga designou a possibilidade
de uma morte “boa” e sem perda de dignidade”. Ao longo dos tempos, esta definição
foi sendo alvo de significações e interpretações com os mais variados matizes.
Neste
momento, a eutanásia é um tema de aceso debate na sociedade portuguesa por via
da apresentação no Parlamento de quatro projectos de lei apresentados respectivamente
pelo PAN, BE, PS e PEV que visam a sua despenalização. Tendo em conta as posições
assumidas pelos vários sectores da sociedade portuguesa, percebe-se perfeitamente
que os mais conservadores, onde quer que se encontrem situados ideologicamente,
entendem que a eutanásia deve permanecer ilegal, enquanto os mais progressistas
defendem a “despenalização da morte voluntária e assistida”. Dentro deste
sector encontram-se os católicos, José Manuel Pureza (dirigente do BE), Paulo Bateira
(médico) e Paula Abreu (socióloga) que assinam o seguinte artigo de opinião que
veio à estampa no “Público” de hoje.
A
despenalização da morte voluntária e assistida não opõe crentes a não crentes.
Numa sociedade pluralista como felizmente é a nossa, os homens e as mulheres de
fé não constituem um partido ou uma força de pressão. Desde logo, porque,
felizmente, o pluralismo de opiniões existe também no seu seio. E numa
sociedade pluralista como felizmente é a nossa, deve ser a tolerância a
imperar, cabendo à lei regular as condições de afirmação dessa tolerância. É
nesse espírito que defendemos a despenalização da morte voluntária e assistida.
Somos
católicos. E tomamos posição no debate sobre a despenalização da morte
voluntária e assistida a partir dessa nossa condição fundamental. Assumimos que
a identidade cristã não está antes de mais em códigos morais fechados mas em
práticas e estilos de vida. Mais do que algo que se pensa, se sente ou se diz,
o cristianismo é algo que se faz. E a vida de Jesus é o testemunho que nesse
fazer prevalece o acolhimento sobre o anátema, a responsabilidade da liberdade
sobre a tutela religiosa ou política.
O
Deus bíblico, que se fez nosso companheiro desde os começos e desde os começos
nos ama como seres de liberdade e autonomia, terá de ser amorosamente convocado
como proximidade afetuosa em total respeito pela nossa autonomia e consciência,
na hora em que chegar o nosso fim de vida.
É
neste espírito que entendemos que, para o/a crente, apoiar ou defender a
despenalização da eutanásia não significa a recusa do dom da vida. Acreditar no
dom da vida é também acreditar que essa é uma dádiva de Deus a todos e todas (e
não apenas a crentes) enquanto pessoas dotadas de consciência moral, de
inteligência e de liberdade. A radicalidade destas três condições da pessoa
humana obriga-nos a reconhecer a pluralidade de posições que diferentes pessoas
podem ter perante os desafios e as dificuldades que, hoje, nos colocam o fim da
vida e a morte. Porque, como escreveu o teólogo Torres Queiruga sobre o dom
divino da vida, “justamente porque Deus me doou a vida a mim, é para que eu a administre.
Não sou Deus mas também não sou escravo: vivo numa relação filial mas sob minha
responsabilidade”.
Defender
a despenalização da eutanásia, tal como ela está a ser proposta atualmente no
parlamento português, significa reconhecer a cada um/a, como ser moral,
inteligente e livre, o direito de, em consciência e em situações de reconhecida
impossibilidade de cura e sofrimento insustentável físico e psíquico, decidir
sobre o fim da sua vida. Não se trata de reconhecer um direito a matar.
Trata-se de reconhecer um direito a morrer de acordo com as condições que só
cada um/a pode avaliar e que só cada um/a pode assumir, de forma reiterada e
acompanhada, que constituem o limite da dignidade da sua própria vida.
Nada
disto contraria a defesa imperativa de um Serviço Nacional de Saúde capaz de
responder às necessidades de todas e de todos, nomeadamente os que se encontram
em situações de doença aguda, prolongada e de sofrimento. Nada disto contraria
a defesa da urgência da cobertura nacional dos cuidados paliativos no Serviço
Nacional de Saúde. Nada disto contraria a necessidade urgente de reconhecer o
papel dos cuidadores informais e de a sociedade e o Estado encontrarem formas
de lhes proporcionar uma rede de apoio de que necessitam e lhes é devida .
Nada disto contraria o direito de cada
pessoa enfrentar a doença, a degradação da sua condição física ou mental, e o
sofrimento de forma estoica, digna e inelutável. Significa apenas reconhecer
que o julgamento e a decisão consciente e individual perante essas condições
são um direito inerente à liberdade radical do ser humano filho de Deus. É
dessa liberdade que nos reclamamos. É essa liberdade que reclamamos para todos.
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