Só
por si, o início julgamento de um crime ocorrido há três anos gera poucas
expectativas para a(s) vitima(s) em relação à punição que se espera para o(s) agressor(es).
Ainda por cima, perante todo o histórico da justiça portuguesa, o que se espera
sempre nestas situações é que o julgamento se prolongue quase indefinidamente,
acabando por molestar mais as vítimas do que os criminosos. Quando estamos
perante crimes que envolvem uma forte componente racista e em que estão
envolvidas autoridades policiais, a sensação de frustração das vítimas ainda é maior.
Começou
a ser julgado hoje, três anos depois, factos que ocorreram a 5 de Fevereiro de
2015, onde estão envolvidos 17 agentes da PSP de Alfragide, acusados de “violência
policial materializada em agressões, disparos,
sequestro e até tortura”, acompanhados de “atos e frases racistas e injuriosas”. Acusa o Ministério Público que tudo se terá passado
“sem justificação aparente e de forma premeditada”.
Esta situação é o tema de fundo do artigo de opinião assinado por
Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, no “Público” de hoje.
Mais de três anos depois, os polícias da esquadra de
Alfragide, acusados dos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à
integridade física, agravados pelo crime de ódio e discriminação racial começam
hoje, finalmente, a ser julgados. A acusação decorre depois de uma das
recorrentes incursões violentas no bairro da Cova da Moura pela PSP, que se
seguiu com a agressão bárbara a seis jovens negros por um grupo de polícias da
esquadra da PSP de Alfragide, que os acusara falsamente de tentativa de invasão
no 5 de fevereiro de 2015, apenas por terem querido saber da sorte de um deles
que havia acabado de ser violentamente espancado no bairro e conduzido pela
polícia à esquadra.
Na verdade, ao longo de décadas assistimos a milhares
de jovens negros deste país a serem quotidianamente provocados, humilhados,
abusados e violentados pela polícia, sem que daí resulte consequência para os
agressores. A brutalidade e a violência policiais nos espaços urbanos das áreas
metropolitanas, onde maioritariamente habitam as comunidades negras, espelham
o apartheid que se vive nos seus bairros e são a face visível
de uma violência de estado perpetrada pelas forças de segurança, escudadas na
indiferença da maioria da sociedade e na impunidade de que sempre gozaram.
Tal como foram as sentenças de morte de Toni, Kuku, MC
Snake e de tantos outros que já sucumbiram às balas da polícia, inscritas no
preconceito racista que grassa nas instituições em geral e, na PSP em
particular, este caso insere-se numa lógica de estigmatização social para
legitimar a violência policial e o racismo institucional. Nos bairros, contra
os jovens negros, a actuação da polícia não corresponde quase nunca aos códigos
e procedimentos que exigem lisura, igualdade de tratamento, respeito pela
dignidade, integridade física e moral das pessoas. A tendência foi sempre de
criminalizar os bairros periféricos, de instalar na opinião pública a ideia de
perigosidade dos bairros como justificação de um certo estado de excepção
jurídica para agredir e violentar ao arrepio da lei e do direito.
O caso que vai agora a julgamento suscitou um enorme
debate e várias reacções inflamadas, nomeadamente por parte das organizações
das corporações policiais e de alguns sectores da sociedade portuguesa. A PSP
começou por minimizar a gravidade do caso mas, face à evidência das provas,
disse querer o apuramento cabal dos factos pelos órgãos competentes interna e
externamente, enquanto as organizações corporativas vieram invocar a presunção
de inocência e orquestrar um frenesim de acusações de linchamento e atentado ao
bom nome da instituição da polícia na praça pública. Houve quem, neste debate,
a pretexto de defender a presunção de inocência dos acusados, tentasse impor a
presunção de culpabilidade das vítimas das agressões. Aliás, sabemos que a
polícia é a primeira a violar a presunção de inocência quando detém jovens
negros e, automaticamente, lança na opinião pública acusações, sem que exista
inquérito ou dedução da acusação do Ministério Público, para aumentar o alarme
social e justificar a sua actuação.
A justiça, do modo como tem actuado, tem sido um dos
principais (re)produtores de imaginários racistas dominantes e do consenso
social em torno da impunidade que grassa nas instituições policiais. Portanto,
o facto desta acusação ser tão cristalina e chegar a julgamento reveste uma
importância capital. A sua dimensão e a gravidade dos factos imputados aos
agentes tornam o caso inédito, o que lhe dá relevância social e política.
Poderá ajudar a desmascarar o racismo dentro das instituições e os mitos sobre
a isenção e a lisura das forças de seguranças na sua relação com sujeitos
racializados. A dedução da acusação nos termos em que ocorreu demonstra também
que, se houver vontade, é possível que o Ministério Público faça o seu trabalho
em condições e que enfrente a atuação da polícia, quando ela infringe a lei.
É claro que a mobilização em torno dos acontecimentos
de 05 de Fevereiro de 2015 contribuiu decisivamente para o que o caso não
tivesse a mesma sorte que tantos outros casos de violência policial. Obviamente
que o desenlace a que assistimos poderá também constituir um momento de ruptura
para que a sociedade comece a olhar com mais atenção para a questão do racismo
nas instituições e nas forças de segurança.
A inquietação
no início deste julgamento é a de saber se a nossa justiça continuará a vestir
a cor do privilégio branco e do estado de negação em que se encontram a
sociedade e as instituições portuguesas face ao racismo. Ou se se dará a
oportunidade a si própria e à sociedade para iniciar uma ruptura com a cultura
de impunidade da violência racista nas nossas instituições do Estado,
nomeadamente, nas policiais. As nossas expectativas, ainda que inseguras, são
grandes e refletem nada mais do que a legítima aspiração à igualdade e à
justiça.
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