Uma
cada vez maior desigualdade na distribuição da riqueza a nível planetário em
nada contribui para a paz mundial antes pelo contrário, é um excelente
potenciador de conflitos entre os povos de todo o mundo. Ainda que aqui ou
acolá, as condições de vida das populações registem algumas pequenas melhorias,
a verdade é que, a nível global, as desigualdades económicas e sociais estão a
agravar-se pois os níveis de pobreza encontram-se a crescer para os que menos
possuem, enquanto os mais ricos vêem o s seus proventos aumentarem
significativamente. A ganância não tem limites e, aqui residirá um dos pontos
fulcrais para a insegurança que se sente a nível global. Não restam grandes
dúvidas de que as políticas neoliberais que actualmente dominam no planeta estão
na base desta situação mas, a tendência é para continuarmos a assistir à sua
radicalização com as nefastas consequências que daí advirão.
O
texto que apresentamos a seguir é um excerto de um longo artigo de opinião
sobre “as crescentes desigualdades económicas e sociais” que o prof.
universitário Filipe Duarte Santos assina no “Público” de hoje, com grande
oportunidade.
A evolução recente da
distribuição da riqueza nas economias avançadas dá-nos um exemplo atual de um
comportamento coletivo extremo surpreendente. O caso dos EUA é paradigmático e
foi recentemente estudado por Piketty, Saez e Zucman (Piketty, 2016). Quando se
compara a distribuição dos aumentos anuais dos rendimentos reais e líquidos em
função do rendimento para dois períodos de tempo consecutivos de 34 anos, um
que termina em 1980 e outro que termina em 2014, surgem duas curvas muito
diferentes. No período de 1946-1980 os maiores aumentos situam-se na classe
média e nos rendimentos mais baixos. O valor do aumento do rendimento da classe
média é cerca de 2% o que representa uma duplicação do rendimento real líquido
em cerca de 34 anos. No período de 1980-2014 a curva inverte-se e agora os
aumentos mais baixos situam-se nos rendimentos mais baixos e os aumentos mais
elevados na parte mais rica da população. A classe média, em lugar de aumentos
reais e líquidos de 2%, no período mais recente teve aumentos de 1%. No período
mais recente os aumentos de 2% só se encontram no percentil dos 4% mais ricos.
No extremo do gráfico correspondente aos rendimentos mais elevados a curva dos
aumentos apresenta um máximo muito pronunciado que atinge aumentos reais e
líquidos anuais superiores a 6%. Tal significa que os mais ricos e apenas os
mais ricos receberam aumentos significativos do rendimento nas últimas décadas.
As desigualdades de riqueza estão pois a agravar-se de forma muito
significativa e isso tem consequências sociais e políticas. O aumento de
riqueza do 1% dos mais ricos é claramente um excesso surpreendente para muitos,
natural para outros, e para o qual existem certamente razões muito fortes. São
provavelmente múltiplas e variadas mas a causa mais próxima pode resumir-se na
afirmação de que nas últimas três a quatro décadas a receita gerada pela
economia fluiu mais para os lucros do que para os salários, comparativamente ao
período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Outro aspeto importante é a
economia americana estar a crescer, mas a taxa de crescimento nas últimas
décadas tem sido, em média, bastante inferior à média do período do pós-guerra.
Importa ainda salientar que enquanto o excedente comercial externo médio do
período 1946-1980 representava 0,5% do PIB dos EUA, no período de 1980-2014
houve um défice comercial externo de 2,7% do PIB (Piketty, 2016). Nas últimas
décadas não só o crescimento económico se tornou mais lento como a economia se
tornou menos competitiva no mercado global. A reação da sociedade americana a
estas adversidades fez-se por meio de múltiplos e complexos mecanismos
políticos, económicos e sociais que redistribuíram os excedentes, agora mais
limitados, favorecendo os mais ricos em detrimento da classe média e dos mais
pobres. Estamos perante decisões surpreendentes que revelam uma enorme fé no
modelo económico e financeiro liberal da “free enterprise”
que grande parte dos americanos considera ter sido não só a causa e o motor da
ascensão dos EUA até se tornar o país mais poderoso do mundo em termos
económicos e militares, como de forma mais geral a origem e a essência da
identidade e do excecionalismo dos EUA (Lipset, 1997). Uma análise mais fina
permite identificar um conjunto de tendências, circunstâncias, processos
económicos e políticos, legislações e regulamentações que contribuíram para
provocar o recente aumento das desigualdades económicas e sociais nos EUA.
Entre elas encontra-se a tendência para a globalização que baixou os salários
nas indústrias mais afetadas pela concorrência externa, os avanços tecnológicos
que aumentaram mais as diferenças salariais em função das qualificações e
competências, especialmente no domínio das tecnologias digitais. Outros fatores
importantes foram a degradação salarial provocada por níveis elevados e
persistentes de desemprego, a perda de representatividade e poder dos sindicatos
nos EUA, a desvalorização dos salários resultante da concentração do poder
económico em grandes empresas. Na área governamental manifesta-se,
especialmente no atual governo, a tendência para contrariar a progressividade
dos impostos, ou seja, diminuir a taxa de imposto sobre o rendimento dos que
auferem maiores rendimentos e a criação de regimes especiais altamente
complexos que aliviam a sua carga fiscal. Importa ainda referir a
financialização e desregulação crescente da economia americana que produz a
chamada “economia do champô” caracterizada por ciclos de – bolha, rebentamento
e nova bolha – no final dos quais o colapso do sistema financeiro é evitado com
injeções massivas de dinheiro dos contribuintes, proveniente principalmente dos
que têm rendimentos médios e baixos. Este ciclo constitui um processo eficiente
de transferir poder financeiro e económico para os rendimentos mais elevados.
As políticas públicas nos EUA estão atualmente a contribuir para agravar as
desigualdades económicas mas tal é considerado um mal menor face ao imperativo
de manter o excepcionalismo e a hegemonia económica e militar do país no mundo.
Prevalece a opinião de que apenas essas políticas públicas podem conseguir que
o PIB do país cresça anualmente acima dos 3%. Este programa político é
apresentado, de forma simplista mas politicamente muito eficaz, através da
frase “Let´s
make America great again”, que baseou a campanha do atual presidente dos
EUA.
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