terça-feira, 25 de maio de 2010

ACABAR COM OS "RICOS" EM VEZ DE ACABAR COM OS "POBRES"

O meu Pai, advogado em Leiria, encarnou o melhor do espírito da República, de que foi militante intrépido. Um liberal social - expressão que encontro para o designar, pelo que dele ainda pude conhecer e, sobretudo, pelo que dele me contaram --, combateu pela democracia e a igualdade social, sofreu, foi preso e deportado. Nunca confundiu as ideias com as pessoas que as defendiam e, por isso, teve o respeito dos seus adversários, alguns deles grandes amigos seus. Com a minha Mãe, pessoa humilde, quase sem instrução, mas de fina inteligência e fé, estiveram sempre ao lado dos mais desfavorecidos. Isso mesmo foi gratamente lembrado por Amigos meus recentemente num almoço na nossa Leiria.

Por ser quem era, o meu Pai colocou-me na escola de Santo Estêvão, a escola primária frequentada pela gente mais pobre da minha Terra. Nessa escola confirmei o que aprendi com o meu Pai, com as suas palavras e o exemplo da sua vida: a inteligência, a generosidade, a lealdade, o sentido de justiça, o espírito de aventura, o sonho, não são qualidades sociais, são qualidades humanas.

Muitos dos meus colegas, se não a maioria, iam descalços para a escola.

Um dia, ao fim da tarde, quando brincava com alguns deles na pequena quinta onde nasci, o meu Pai chegou e viu, descoberta e prazer de miúdo, que eu me tinha descalçado também. À noite, tranquilamente, disse-me: «O que tens de fazer não é tirar os sapatos, mas fazeres sempre tudo na tua vida para que toda gente possa andar calçada».

Se o leitor substituir «sapatos» por «conhecimento» compreenderá o que pode ser uma metáfora expressiva do crime que continua a ser cometido no nosso sistema educativo. Em vez de calçar todos os alunos, o eduquês, o Ministério, empenham-se em tirar os sapatos a todos.

E a verdade é que não conseguem acabar com os «ricos», que têm os meios que têm, porque há o ensino privado e o estrangeiro. O que conseguem é apenas tornar todos mais «pobres», muito particularmente, os que entram na escola sem nada. Não é óbvio?

(Para quem, tendo acompanhado o que escrevi, ainda não tenha percebido, estranhamente, o que designamos com a expressão, digo, rapidamente, que o eduquês é uma mistura de ideologia igualitarista -- reaccionária, geradora, afinal, como se sabe, da maior desigualdade - e teorias pedagógicas ditas «novas», mas velhíssimas, que frequentemente ocultam ou disfarçam uma grande ignorância e ausência de domínio do conhecimento e dos saberes que contam, que era suposto e é imperativo a escola transmitir e promover.)

Supostamente em nome da não discriminação de quem não tem acesso à cultura em casa, desvalorizam, reduzem até ao ridículo (ao trágico, na realidade; ver as aberrações lúcida e corajosamente divulgadas por Nuno Crato), suprimem a cultura, os saberes, o conhecimento que conta. Estupidificam para anular as diferenças, em vez de elevar todos, apoiando (como deviam, mas não sabem ou não querem fazer) os que apresentam mais dificuldades. Odeiam e impedem a escola e o ensino que revelaria as diferentes capacidades e vocações, procurando levá-las tão longe quanto se possa e queira.

Claro que o eduquês convém a muita gente, porque há sempre muita gente que prefere não fazer nada, não assumir responsabilidade nenhuma. Foi também por isto que o eduquês lavrou como um incêndio.

Cúmulo de delírio fanático, de estupidez que «mata». Que «mata» as pessoas e está a matar o País.

Guilherme Valente

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