segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

AUSTERIDADE SEM FIM À VISTA



Oficialmente terminou domingo dia 15 de Dezembro de 2013 a intervenção da troika na Irlanda mas os únicos que têm razões para comemorar são os governantes irlandeses e uma pequena minoria. A esmagadora maioria do povo não sente qualquer espécie de alívio, esperando, pelo contrário, mais alguns mimos negativos para o próximo ano tais como o aumento do preço da água para consumo doméstico e ainda mais cortes na segurança social.
Entre nós, ultimamente, a propaganda governamental pretende convencer-nos de que o anunciado fim do programa da troika para meados de 2014 trará o paraíso para os portugueses. Acreditar nisto é acreditar que o pai natal existe…
O Expresso realizou uma reportagem pela Irlanda e traz-nos como exemplo o relato sobre o inferno em que se tornou a vida de uma família, cuja única fonte de rendimento é o trabalho, após a implementação das famigeradas medidas de austeridade. Vale a pena ler o texto seguinte que transcrevemos daquele semanário.
Após um árduo dia de trabalho, Martin e Yvone Brennan sentam-se à mesa da cozinha para fazer contas à vida. Entre extractos bancários, contas domésticas e recibos de ordenado do último mês, os Brennans calculam quanto lhes resta para as prendas de Natal de Mairead e Patrik, os dois filhos menores do casal. “Com estes cortes nos subsídios e aumentos de impostos, chegamos a meio do mês sem nada nos bolsos”, conta Martin, que trabalha como empregado de limpeza num hospital local. Com um ordenado de €9,50 por hora, afirma detestar o emprego que tem. “Acordo todos os dias revoltado por ter de fazer este trabalho. Mas não tenho outra opção. Sem este emprego não teríamos dinheiro nem para alimentar as crianças”, explica.
Mas nem sempre foi assim. Os Brennans, à semelhança de outras tantas famílias consideradas da classe operária, tiveram durante a era do “tigre celta” um vida livre de preocupações financeiras. Martin trabalhava numa empresa ligada à construção civil e Yvone a tempo inteiro nos serviços administrativos de um dos departamentos da universidade Trinity College. Era o início dos anos 2000 e o futuro apresentava-se próspero. Na altura, Martin conseguiu um empréstimo bancário para comprar uma pequena casa num modesto bairro operário na zona antiga de Dublin. A mesma casa que hoje habitam e pela qual orgulhosamente continuam a pagar mensalidades ao banco credor. Nessa altura, a vida social do jovem casal não podia ser melhor. Jantares em restaurantes e noitadas em bares faziam parte da rotina, e umas semanas de férias no Algarve ou nas ilhas Canárias estavam sempre garantidas.
Com o estouro da bolha no sector imobiliário em 2008, que arrastou grande parte das instituições financeiras para a falência e forçou o governo a intervir na recapitalização da banca, a empresa onde Martin trabalhava faliu. Nessa mesma altura Yvone viu o seu contrato na Trinity College reduzido para três dias de trabalho semanais. Sem pré aviso, os Brennans embalaram “na jornada mais difícil da sua vida, sem fim à vista”.
Em contraste com o discurso pessimista dos Brennans, os homens do Governo não poderiam estar mais confiantes na recuperação económica do país. Este fim de semana [passado], a Irlanda abandona oficialmente, sem recurso a qualquer apoio suplementar da zona euro no regresso ao financiamento no mercado, o programa de assistência financeira de 85 mil milhões de euros. Segundo o primeiro-ministro, Enda Kenny, “esta é a decisão correta para a Irlanda, e este é o momento certo para se tomar esta decisão”. Palavras de otimismo suportadas por um tímido crescimento de 0,4 por cento no segundo semestre do ano, por uma ligeira descida da taxa de desemprego e por juros da dívida considerados sustentáveis.
Na realidade, a Irlanda apresenta sinais de recuperação. Os setores da construção e das exportações mostram um ligeiro aumento de atividade, investidores estrangeiros continuam a mostrar-se atraídos por uma taxa reduzida de 12,5% de impostos, e as multinacionais da área tecnológica e da indústria farmacêutica começam a expandir negócio e a criar emprego um pouco por todo o país.
No entanto, membros da oposição, analistas financeiros e o povo em geral dizem-se pouco convencidos de que estes desenvolvimentos sejam suficientes para a recuperação económica e receiam que a decisão do Governo em sair do resgate sem um programa cautelar possa estar a pôr em risco o futuro do país. O facto de o Governo já ter anunciado que irá manter um certo nível de austeridade no orçamento do próximo ano, ao impor mais impostos sobre o tabaco, álcool e água para consumo doméstico e aumentar ainda mais os cortes na segurança social, faz temer que continue a cair sobre o contribuinte a responsabilidade de pagar a fatura.
“Nos últimos anos os irlandeses passaram por tempos horrendos. Chegou a altura de o Governo aliviar as medidas de austeridade e parar de sufocar a gente desta nação”, diz John Donovan, um ex-empresário de 55 anos, que passou os últimos três anos desempregado. John é dos que acreditam que os sinais de recuperação “não passam de uma ilusão” e que o Governo “mente” ao dizer que a situação do país está no caminho certo.”As medidas de austeridade que nos continuam a impor só agravam ainda mais a situação em que a Irlanda se encontra”, diz John ao dar como exemplo o aumento de quase 20% do número de sem-abrigo no país, os 18,5% de famílias com pagamentos de empréstimo de casa em atraso e os cerca de 200 mil irlandeses que desde 2008 emigraram.
Entretanto, na casa dos Brennans encontrou-se a solução para as prendas dos miúdos. “O meu pai dá-me todos os anos por esta altura 50 euros. Conto com esse dinheiro para comprar os presentes das crianças”, explica Yvone com alguma tristeza. Martin conforta-a em silêncio por um breve momento e de seguida confessa-se frustrado com a situação em que vivem. “A ideia de que os meus filhos sejam privados de um Natal decente enfurece-me. Mas o que mais me revolta é ver os nossos governos irem a Bruxelas congratularem-se com os números que conseguiram obter com tanta austeridade, quando há imensa gente neste país a passar fome. Eles continuam a negar haver pais de família a comer cereais ao jantar. Dizem que é um mito urbano, mas a realidade é outra, existe sim quem sobreviva a comer cereais. Eu sei disso porque eu sou um deles.”

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