Oficialmente terminou domingo dia 15 de
Dezembro de 2013 a intervenção da troika na Irlanda mas os únicos que têm
razões para comemorar são os governantes irlandeses e uma pequena minoria. A esmagadora
maioria do povo não sente qualquer espécie de alívio, esperando, pelo
contrário, mais alguns mimos negativos para o próximo ano tais como o aumento
do preço da água para consumo doméstico e ainda mais cortes na segurança
social.
Entre nós, ultimamente, a propaganda
governamental pretende convencer-nos de que o anunciado fim do programa da
troika para meados de 2014 trará o paraíso para os portugueses. Acreditar nisto
é acreditar que o pai natal existe…
O Expresso realizou uma reportagem pela
Irlanda e traz-nos como exemplo o relato sobre o inferno em que se tornou a
vida de uma família, cuja única fonte de rendimento é o trabalho, após a implementação
das famigeradas medidas de austeridade. Vale a pena ler o texto seguinte que
transcrevemos daquele semanário.
Após um árduo dia de
trabalho, Martin e Yvone Brennan sentam-se à mesa da cozinha para fazer contas
à vida. Entre extractos bancários, contas domésticas e recibos de ordenado do
último mês, os Brennans calculam quanto lhes resta para as prendas de Natal de
Mairead e Patrik, os dois filhos menores do casal. “Com estes cortes nos
subsídios e aumentos de impostos, chegamos a meio do mês sem nada nos bolsos”,
conta Martin, que trabalha como empregado de limpeza num hospital local. Com um
ordenado de €9,50 por hora, afirma detestar o emprego que tem. “Acordo todos os
dias revoltado por ter de fazer este trabalho. Mas não tenho outra opção. Sem este
emprego não teríamos dinheiro nem para alimentar as crianças”, explica.
Mas nem sempre foi assim. Os Brennans,
à semelhança de outras tantas famílias consideradas da classe operária, tiveram
durante a era do “tigre celta” um vida livre de preocupações financeiras. Martin
trabalhava numa empresa ligada à construção civil e Yvone a tempo inteiro nos
serviços administrativos de um dos departamentos da universidade Trinity
College. Era o início dos anos 2000 e o futuro apresentava-se próspero. Na altura,
Martin conseguiu um empréstimo bancário para comprar uma pequena casa num modesto
bairro operário na zona antiga de Dublin. A mesma casa que hoje habitam e pela
qual orgulhosamente continuam a pagar mensalidades ao banco credor. Nessa altura,
a vida social do jovem casal não podia ser melhor. Jantares em restaurantes e
noitadas em bares faziam parte da rotina, e umas semanas de férias no Algarve ou
nas ilhas Canárias estavam sempre garantidas.
Com o estouro da bolha no
sector imobiliário em 2008, que arrastou grande parte das instituições financeiras
para a falência e forçou o governo a intervir na recapitalização da banca, a
empresa onde Martin trabalhava faliu. Nessa mesma altura Yvone viu o seu
contrato na Trinity College reduzido para três dias de trabalho semanais. Sem pré
aviso, os Brennans embalaram “na jornada mais difícil da sua vida, sem fim à
vista”.
Em contraste com o discurso
pessimista dos Brennans, os homens do Governo não poderiam estar mais confiantes
na recuperação económica do país. Este fim de semana [passado], a Irlanda abandona
oficialmente, sem recurso a qualquer apoio suplementar da zona euro no regresso
ao financiamento no mercado, o programa de assistência financeira de 85 mil
milhões de euros. Segundo o primeiro-ministro, Enda Kenny, “esta é a decisão correta
para a Irlanda, e este é o momento certo para se tomar esta decisão”. Palavras de
otimismo suportadas por um tímido crescimento de 0,4 por cento no segundo
semestre do ano, por uma ligeira descida da taxa de desemprego e por juros da
dívida considerados sustentáveis.
Na realidade, a Irlanda apresenta
sinais de recuperação. Os setores da construção e das exportações mostram um
ligeiro aumento de atividade, investidores estrangeiros continuam a mostrar-se
atraídos por uma taxa reduzida de 12,5% de impostos, e as multinacionais da
área tecnológica e da indústria farmacêutica começam a expandir negócio e a
criar emprego um pouco por todo o país.
No entanto, membros da oposição,
analistas financeiros e o povo em geral dizem-se pouco convencidos de que estes
desenvolvimentos sejam suficientes para a recuperação económica e receiam que a
decisão do Governo em sair do resgate sem um programa cautelar possa estar a
pôr em risco o futuro do país. O facto de o Governo já ter anunciado que irá
manter um certo nível de austeridade no orçamento do próximo ano, ao impor mais
impostos sobre o tabaco, álcool e água para consumo doméstico e aumentar ainda
mais os cortes na segurança social, faz temer que continue a cair sobre o
contribuinte a responsabilidade de pagar a fatura.
“Nos últimos anos os
irlandeses passaram por tempos horrendos. Chegou a altura de o Governo aliviar
as medidas de austeridade e parar de sufocar a gente desta nação”, diz John
Donovan, um ex-empresário de 55 anos, que passou os últimos três anos
desempregado. John é dos que acreditam que os sinais de recuperação “não passam
de uma ilusão” e que o Governo “mente” ao dizer que a situação do país está no
caminho certo.”As medidas de austeridade que nos continuam a impor só agravam
ainda mais a situação em que a Irlanda se encontra”, diz John ao dar como
exemplo o aumento de quase 20% do número de sem-abrigo no país, os 18,5% de
famílias com pagamentos de empréstimo de casa em atraso e os cerca de 200 mil
irlandeses que desde 2008 emigraram.
Entretanto, na
casa dos Brennans encontrou-se a solução para as prendas dos miúdos. “O meu pai
dá-me todos os anos por esta altura 50 euros. Conto com esse dinheiro para
comprar os presentes das crianças”, explica Yvone com alguma tristeza. Martin conforta-a
em silêncio por um breve momento e de seguida confessa-se frustrado com a situação
em que vivem. “A ideia de que os meus filhos sejam privados de um Natal decente
enfurece-me. Mas o que mais me revolta é ver os nossos governos irem a Bruxelas
congratularem-se com os números que conseguiram obter com tanta austeridade,
quando há imensa gente neste país a passar fome. Eles continuam a negar haver
pais de família a comer cereais ao jantar. Dizem que é um mito urbano, mas a
realidade é outra, existe sim quem sobreviva a comer cereais. Eu sei disso
porque eu sou um deles.”
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