Sendo a finalidade última do sistema
capitalista a obtenção do lucro máximo, é natural que, se este objectivo for
deixado em roda livre a sociedade se torne numa selva e, como tal, predomine a
lei do mais forte.
O texto que Clara Ferreira Alves (CFA)
assina na Revista do Expresso de ontem deixa-nos arrepiados. Ela comenta o que
é o sistema de saúde americano, que funciona sem qualquer “vigilância nem
regulação” e apresenta vários exemplos retirados de um jornal de referência dos
Estados Unidos da América. Sabendo-se que o negócio da saúde é o segundo
melhor, logo a seguir ao das armas, juntando-se a isto a sua completa entrega
aos “mercados”, ficam criadas as condições para um sistema de extorsão dos
cidadãos que, naturalmente, em algum momento da sua vida, terão problemas de
saúde. Mas, o melhor é meditarmos sobre o artigo de CFA e lutarmos para
impedirmos que não nos destruam o Serviço Nacional de Saúde, um dos maiores
benefícios que o 25 de Abril nos trouxe.
Um dos grandes mistérios do
século XXI é o custo exacto dos cuidados de Saúde. Ninguém sabe. Ninguém sabe
quanto custa ao certo uma colonoscopia, uma ressonância magnética, uma
cirurgia, um penso, uma consulta de urgência. Sabe-se o preço dos cuidados, o
preço cobrado e o preço real, mas não se sabe como é avaliado este preço,
incluindo o preço “real”. A existência de sistemas nacionais de Saúde faz com
que os preços públicos e privados, sejam condicionados pelo SNS em vez de
definidos pela liberalização do mercado e as seguradoras. As pessoas
queixam-se, e algumas desejam a privatização da medicina, com esse mito das
consultas baratas ao lado dos supermercados e dos dispensários privados com
preços atraentes, porque não têm a menor ideia de quanto custa a Saúde, e acham
que privatizar é dar a toda a gente o acesso a hospitais e tratamentos privados
de grande qualidade sem pagamentos exorbitantes.
Nos Estados Unidos, o país
que mais gasta em Saúde e onde o mercado livre é o único regulador do sistema,
a disfunção é evidenciada não tanto na iniquidade e injustiça social e sim nos
preços praticados. Os mais caros do mundo.
O “New York Times” tem
publicado uma série de reportagens sobre os custos dos cuidados de Saúde, e
vale a pena ler para perceber que qualquer Obamacare com erros seria sempre
melhor do que o actual sistema. Pena que o Obamacare se tenha tornado uma arma
de arremesso político, o que demonstra a imoralidade e ingovernabilidade do
processo.
Numa dessas reportagens,
sobre uma urgência num hospital da Califórnia, uma mulher de 26 anos, com um
joelho ferido num acidente doméstico, e uma criança com a “cabeça partida”
tiveram as suas lacerações tratadas e desinfetadas. Num tempo recorde, eram
pequenas feridas, e num ambiente agradável. Havia DVD para a criança, simpatia
no acolhimento. A conta da ferida no joelho foi de 1229
dólares. A cola na cabeça da
criança, um desses pensos medicinais que evitam suturas, custou 1696 dólares. É
isso. 1650 euros num caso, arredondando, e 1250 euros noutro. O sistema está
inflacionado e é opaco, justamente para permitir aos grandes grupos
hospitalares que ganham milhões com a Saúde (e que são um lobby poderoso e bem
financiado em Washington, juntamente com as seguradoras, membros do cartel da
Saúde), cobrar o preço em função do lucro máximo. Há mais caos assim. Em Nova
Iorque, conta a repórter Elisabeth Rosenthal, um homem pagou 3355 dólares por
cinco pontos num dedo, depois de se ter cortado a descascar um abacate.
Os economistas e
especialistas deste sector sabem que os preços dos hospitais não correspondem
aos preços dos cuidados, correspondem aos lucros possíveis e maximizados num
sistema sem vigilância nem regulação, onde os prestadores de cuidados de Saúde
são os únicos players. Toda a gente ganha praticando a extorsão. Os preços dos
médicos sobem em flecha, o dos medicamentos também (já experimentaram comprar
um medicamento num drugstore americano?, um spray para a alergia nasal custa
três a cinco vezes mais do que na Europa) e as camadas de intermediários ganham
à custa da ignorância dos sistema em roda livre. É o capitalismo selvagem. E tudo
porque o maldito Estado resolveu não se meter no assunto exceto para os mais pobres
e mais velhos, caso dos Medicaid e Medicare, que são coberturas muito mais frágeis
do que as dos SNS europeus.
No retalho, um saco de soro
intravenoso custa menos de um dólar, num hospital custa 137 dólares. Um comprimido
de Tylenol com cadeína custa 50 cêntimos. No hospital custa 37 dólares. E os
procedimentos médicos e de diagnóstico chegam a custar 10 e 20 vezes mais do
que na Europa e no Canadá. Os preços variam dentro da América, mas nos
hospitais dos grandes grupos o objectivo é usar a arbitrariedade do sistema
para praticar o preço mais alto e mais lucrativo. Um dia no hospital p+ode
custar entre 12 mil dólares e o infinito. A opacidade do sistema destina-se a
permitir a extorsão e a cartelização dos cuidados de Saúde entre as seguradoras
de modo a que os preços nunca baixem. Um angiograma, uma colonoscopia ou um
parto podem custar o dobro ou o triplo do que custam na Europa. Não admira que
sobre o dinheiro para construir hospitais de luxo, o sistema é opulento para
justificar o monopólio.
Curiosamente a revolução tecnológica
que usa os algoritmos para otimizar sistemas e beneficiar os consumidores nunca
aplicou a inteligência aos sistemas de saúde. Jack Dorsay, o fundador do Twiter
e do Square, o sistema de pagamentos por telemóvel que elimina os bancos e as
suas taxas, beneficiando as pequenas empresas, prometeu estudar o assunto para
chegar a saber, quanto custa, afinal… uma radiografia. O consumidor final não
tem a menor ideia do que custa e como é apurado o preço do que consome. E paga
o que lhe pedem. Pensem nisto quando atacarem o SNS. (*)
(*) Neste texto parece
haver uma conversão de dólares em euros que não está certa mas que não retira
qualquer sentido ao que é afirmado.
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